Conheça a Rafulândia

Uma cidade tão grande como a nossa São Paulo sem dúvida está repleta de tesouros do passado escondidos por ai. Não me refiro a ouro, artefatos arqueológicos e afins, mas a acervos particulares que poucos ou ninguém teve o privilégio de conhecer por serem restritos ao próprio colecionador, familiares ou amigos muito íntimos.

E esse é o caso da Rafulândia, nome carinhoso que damos ao incrível acervo que um já falecido paulistano montou no decorrer da sua vida. Mas antes de falar sobre este curioso museu particular vamos falar sobre seu excêntrico criador.

Raful de Raful em sua residência no final da década de 1990

Raful de Raful, sim esse é o nome e sobrenome dele, foi um caixeiro viajante nascido em 1913 que trabalhava vendendo principalmente jogos – como baralhos – para clubes, em uma época que entidades clubísticas eram bastante populares Brasil afora. E nessas viagens pelos rincões do país e interior paulista Raful foi adquirindo e provavelmente também ganhando muitas antiguidades curiosas e objetos, que em um país avesso a cultura como nosso as pessoas preferem descartar.

E assim ele foi colecionando desde pequenos ítens, como lâmpadas tipo Thomas Edison, garrafas, placas de veículos, castiçais, câmeras fotográficas a grandes objetos como pianos, vitrolas, relógios de carrilhão, polifons e até veículos.

Réplica de catedral europeia da coleção de Raful de Raful (clique para ampliar)

Morador do bairro da Aclimação onde além de viver guardava sua preciosa coleção, Raful de Raful seguia uma vida regrada e sem vícios, pois além de não beber ou fumar, fazia ginástica diariamente e também era vegetariano. Tinha também como hábito evitar beber água gelada, esta última uma crendice dele.

Talvez por isso este paulistano curioso tenha tido uma vida tão longeva. Faleceu aos 89 anos de idade no ano de 2003.

Em razão disso vídeos dele ou mesmo fotografias são difíceis de se encontrar. No YouTube existe esse trecho do programa SBT Repórter que é dedicado a Raful e seu museu, que apesar da baixa resolução recomendo assistir.

A RAFULÂNDIA

Se Raful de Raful já despertava interesse das pessoas antes de ser conhecido através da mídia (ele também chegou a participar do programa Jô Soares Onze e Meia), após suas aparições na televisão muita gente ficou interessada em conhecer o tal museu que ele mantinha em sua casa.

Entretanto, conhecer seu museu sempre foi um privilégio de poucos. Afinal, além de ser uma pessoa bastante reservada Raful possuía objetos valiosos e era idoso, o que não era uma boa combinação para deixar seu endereço conhecido. Tanto é que ao conceder a entrevista ao SBT Repórter exigiu que o endereço não fosse divulgado.

Raful de Raful em 1998

Após sua morte o museu entra em um “período de hibernação” pois seus filhos ou netos embora também tenham apreço pelo acervo de Raful, tinham seus trabalhos e suas vidas o que os impedia de se dedicar ao local. De 2003 até 2021 foram raríssimas as oportunidades que o local recebeu visitas.

Isso criou uma espécie de lenda urbana sobre a Rafulândia. Alguns alegavam que a história do tal museu em uma pacata rua da Aclimação nunca passou de um boato, e outro de que a família vendeu tudo inclusive a casa. O segundo boato foi o que eu acreditei por longos anos pois embora eu soubesse em qual rua ficava a Rafulândia, nunca vi uma viva alma no lugar desde que me interessei pelo assunto no já distante ano de 2010.

Porém em dezembro de 2021 eu poderia finalmente descobrir toda a verdade a respeito deste incrível local. Um de seus netos, Victor Raful, entrou em contato com o São Paulo Antiga e me fez o convite para visitar e conhecer o espaço. E lá fui eu.

Na foto Victor e Lauro Raful, respectivamente neto e filho de Raful de Raful (clique para ampliar)

O espaço atualmente não está como Raful de Raful deixou, mas foi rearranjado pelo seu filho Lauro e seu neto Victor de modo que tudo ficasse adequadamente acomodado dentro da casa.

Na parte exterior, no quintal, está uma parte muito interessante: Uma réplica cenográfica de vila colonial feita pelas próprias mãos de Raful, utilizando portões, portas, grades, madeiramento e muitos outros materiais oriundos de casas e casarões demolidos São Paulo afora que ele foi trazendo pra sua propriedade.

Nesta “vilinha” encontramos réplicas de cadeia pública, armazém, casa, capela, convento e outra igreja, além de uma casa inspirada no solar da Marquesa de Santos.

Uma das casas coloniais da vila cenográfica (clique para ampliar)

Já no interior da casa principal é que encontramos as verdadeiras preciosidades de sua coleção: são objetos raros até no exterior como polifons e pianos de cilindro, máquinas de escrever de todos os tipos (uma jamais usada e retirada recentemente da caixa) e algumas até de padrões que não vingaram. Caixas de música de todos os tipos e tamanhos, rádios pequenos e outros do tamanho de uma cômoda, além de muitas outras coisas curiosas e estranhas que talvez você jamais encontre reunidas da mesma maneira em outro lugar.

Entre os objetos estranhos destaco uma espécie de “masmorra” um curioso cômodo do porão da residência que tem um manequim vestindo túnica de monge, ladeado de um caixão do século XIX e um esqueleto que há muito perdeu sua cabeça.

Veja mais fotos da vila colonial cenográfica:
(clique na miniatura para ampliar)

ACERVO QUASE FOI DA USP

No final dos anos 1990 Raful de Raful quase se desfez do seu acervo. Ele recebeu uma proposta oficial da USP para vender seu acervo para a instituição, que pretendia incorporar a coleção ao Museu Paulista. Na época, em entrevista à Folha de S.Paulo, ele justificou o motivo de vender a coleção: “”Por que quero vender tudo?”, pergunta-se Raful. “Porque já gozei cada objeto. Não me expandi no cigarro nem na bebida -o prazer de viver extraí da coleção. Como não sou eterno, está na hora de passar as peças adiante. Poderia doá-las, mas tenho receio. Quem recebe em doação não dá valor.””.

Por alguns detalhes e pela ausência de um patrocinador para bancar a empreitada o acervo acabou não sendo negociado com a USP e até hoje se encontra no mesmo lugar de sempre.

Assista ao nosso tour pelo acervo:

Veja fotos da coleção de Raful de Raful:
(clique na miniatura para ampliar)

Bibliografia consultada:

Folha de S.Paulo – Edição de 25/7/1997
O Fotero – Link visitado em 03/1/2021

Agradecimentos:

Victor e Lauro Raful pelo gentil convite
Bruñel Galhego Ricci pela foto p&B que abre este artigo

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11 respostas

  1. Ótima matéria Douglas, quando fiz o curso de guia no Senac Aclimação conheci uma senhora chamada Eunice, que acho que era da Associação de Bairro do Cambuci, e ela foi a pessoa que me falou sobre os tesouros do bairro da Aclimação e a casa do Raful foi uma delas.

  2. Excelente matéria Douglas e colaboradores, parabéns pela interessante mostra de cultura.

  3. Que maravilha de legado. Conheci RAFUL, vendedor de baralhos do Porto Ferreira Futebol Clube, onde eu frequentava. Era uma pessoa cativante que deixou aqui entre nós, muita saudade. Parabéns a seus familiares, e obrigado por cuidarem de um patrimônio histórico. Abraço

  4. Nos anos 1990 soube, por acaso (em jornais ou rádio), o endereço.
    Um belo dia arrisquei ir até lá assim, do nada, e, para grande sorte, quem atendeu a campainha foi o próprio Raful.
    Gentilíssimo, me mostrava alguns ítens da coleção, enquanto conversávamos e, pasmem, me deu para segurar uma lâmpada de Edison!! (pensei: minha nossa, e se cai da mão? Que risco!!).
    Devo ter passado lá pouco mais de 1 hora. Ao sair era nítida a sensação de ter viajado no tempo. Indelével na memória.

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