O desconhecido Tramway de São Bernardo

Primeiro berço industrial do Estado de São Paulo a capital paulista tinha diversos bairros com vocação para a residência operária no início do século 20, como Brás, Belenzinho e Mooca. Essas regiões com suas numerosas fábricas concentravam ao seu redor inúmeras residências para funcionários, sejam em imóveis próprios, alugados ou nas famosas vilas operárias.

Contudo aos poucos esses bairros foram ficando lotados e numa época em que grandes edifícios residenciais ainda não eram realidade, a solução era expandir moradias para outros bairros e até cidades vizinhas, como Santo André e São Caetano.

Dona de grande extensão de terras em São Bernardo do Campo, a família Pujol sentiu que era o momento de lotear e urbanizar suas propriedades na cidade vizinha. Para isso Ernesto Pujol e Hipólito Gustavo Pujol criaram a Empreza Immobiliaria de S.Bernardo (grafia da época) e começaram a fatiar a propriedade, surgindo bairros operários em uma área de 6 milhões de metros quadrados entre as estações ferroviárias da São Paulo Railway (SPR) de São Bernardo(Santo André) e São Caetano.

Planta de um dos empreendimentos da EISB – Jardim Nova Petrópolis

Surgiam assim bairros populares novos como Operário, Saúde e Santa Maria e também bairros mais elitizados como Jardim Campestre e Utinga. Posteriormente surgiu também pela EISB o bairro de Nova Petrópolis, também mais destinado às pessoas de alta renda.

Contudo esses bairros não eram em São Paulo e para chegar ao trabalho na capital os moradores necessitavam de transporte para ligar a região até a linha ferroviária da São Paulo Railway. Como os Pujol não atraíram interessados em investir em jardineiras (ônibus abertos) para operar na região a solução partiu deles mesmo: criar e bancar o próprio sistema de transporte, um tramway (espécie de bonde) local.

E foi assim que surgiu em 3 de maio de 1923 o chamado Tramway de São Bernardo:

A Gazeta – Edição de 2/5/1923

Ao contrário do que estamos acostumados a ver no tramway da Cantareira, com locomotiva à vapor e alguns carros de passageiros o serviço inaugurado pela EISB para ligar seus novos bairros até a estação ferroviária de São Bernardo era bem menor e mais tímido. Um acordo tratado com a empresa de energia The São Paulo Tramway Light & Power assinado em 1922 para a instalação de bondes elétricos ainda não tinha saído do papel e nem mesmo os veículos encomendados junto à francesa Renault haviam chegados ao Brasil, com isso a estreia foi bem mais modesta.

Um Ford modelo T sobre trilhos (clique para ampliar)

Ao invés dos veículos anunciados pela empresa junto à imprensa chegaram os “provisórios” veículos modelo Ford T movidos à gasolina adaptados para o transporte em trilhos. As jardineiras da empresa americana eram montadas em sua fábrica paulistana localizada no bairro do Bom Retiro, e apesar de modestos tinham a robustez da mecânica Ford.

Contudo isso não foi motivo para frustração. A inauguração da linha férrea foi um grande sucesso e atraiu de populares a autoridades que vieram ver de perto a partida da primeira composição que percorreu a primeira linha e posteriormente se dirigiram à garagem da empresa onde ocorreu uma recepção aos convidados com lanches e música.

Na foto a garagem do tramway da EISB (clique para ampliar)

No início do sistema de tramway de São Bernardo foi inaugurada apenas uma linha, chamada de circular. Contudo a EISB já tinha algumas obras em andamento para inaugurar outras linhas, atendendo outras localidades do município e até outras áreas de São Caetano.

Percurso: Linha Circular (oito quilômetros)
Atende aos bairros Industrial, Jardim, Operário, Campestre, Utinga, Saúde e Santa Maria.

Apesar da empolgação inicial com o tramway e com a venda de lotes, a empresa dos irmãos Pujol tinha algumas dificuldades financeiras que deixavam a execução do projeto dos trilhos consideravelmente lenta. A segunda linha prometida para “poucos meses” demorou alguns anos para sair do papel, sendo inaugurada somente em 11 de janeiro de 1925.

Correio Paulistano – 8/1/1925

Nas notícias veiculadas sobre a inauguração nenhuma menção aos bondes franceses e nem mesmo qualquer imagem deles foram encontradas até hoje, o que me faz crer na possibilidade que eles jamais vieram ao país e a linha talvez operou por toda sua existência com os já mencionados carros da Ford adaptados.

Em artigo publicado no jornal “Praça de Santos” é mencionado que o prefeito da cidade perdeu a paciência com Empresa Imobiliária São Bernardo e mandou cobrir os trilhos, alegando que os bondes não passavam de “insuportáveis calhambeques”. O termo calhambeque é largamente utilizado para definir carros velhos ou ruins, o que reforça a tese que os bondes da Renault de fato não vieram.

convidados desembarcam na estação Saúde no dia da inauguração, em 1923 (clique para ampliar)

O popularmente chamado “bondinho (ou trenzinho) dos Pujol” não tiveram uma vida longa. Com a crise de 1929 os Pujol entraram em séria crise financeira o que levou a perderem suas propriedades na região, bem com as áreas que seriam futuramente loteadas. Levadas a leilão foram adquiridas pelos Simonsen que mantiveram os projetos de loteamento mas extinguiram o sistema de tramway implementado pela EISB seis anos antes. Era o fim da linha.

Um século depois da inauguração da primeira linha, são poucas as pessoas que se recordam desse breve sistema de tramway que operou em São Bernardo do Campo e arredores, bem como são raras as imagens existentes. Bem diferente do início do século passado, as cidades do ABC paulista hoje em dia são atendidas por diversos modais, como ônibus, trólebus e ferrovia.

A linha tinha até uma rotunda (clique para ampliar)

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

Correio Paulistano edição de 13/1/1923
Correio Paulistano edição de 8/1/1925
A Gazeta edição de 2/5/1923
A Gazeta edição de 19/5/1923
O Combate 5/9/1922
Praça de Santos 24/10/1929

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8 respostas

  1. Maravilhosa reportagem. Sempre trabalhei no ABC e nunca ouvi falar destes fatos. Interessantes e de enorme importância cultural. Parabéns

  2. Excelente artigo, dois comentários:

    – Ao menos uma das automotrizes Renault prometidas pelo Pujol foi entregue e chegou a rodar, existem fotos dela no livro “SPR, Memorias de uma Inglesa”;
    – Alem das automotrizes os Pujol tinham ao menos uma locomotiva carenada de quatro rodas fabricada na Alemanha pela BMAG (Berliner Maschinenbau A.G., vormals L. Schwartzkopf).

  3. Apesar de mencionar São Bernardo, cabe lembrar que tratam-se de estações e bairros existentes hoje nos municípios de Santo André e São Caetano do Sul respectivamente. Na época do tramway apesar de Santo André já estar emancipado de São Bernardo do Campo, a estação ainda se chamava São Bernardo.

  4. Bela história. A antiga prefeitura de SBC, na Rua Mal. Deodoro, foi estação do Tramway. Faz alguns anos mapeei todo o trajeto do Tramway no Google Earth e é curioso saber que algumas curvas de ruas e avenidas atuais se devem ao trajeto dos trilhos.

    1. Olá, Fabio!

      Você disse que mapeou todo o trajeto no Google Earth. Você chegou a produzir um print ou uma imagem com esse trajeto?

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