Uma fábrica de papel no meio de São Paulo

Não me recordo de um artigo escrito por mim que tenha demandado tamanha pesquisa e tempo. É incrível como grandes empresas do passado podem simplesmente desaparecer como num passe de mágica. Com este trabalho de pesquisa, espero, que o próprio artigo, uma vez publicado, possa fazer aparecer novas informações.

Este é um caso que merece ser bem contextualizado, pois estaremos tratando de uma empresa que deu muito o que falar, afinal uma de suas unidades, uma fábrica de papel e celulose, foi alvo de muitos problemas por conta da óbvia poluição que produzia, podemos dizer, no meio da cidade de São Paulo.

clique na foto para ampliar

Voltemos no tempo! Estávamos em 1942 e as barrancas do Tietê, lá pelos lados do bairro do Limão, ainda eram parte de um rio natural, não havia tido seu curso alterado, produzia seus transbordamentos e inundações ao lado de seu leito original. Era uma área que ficava longe do centro e que começava a se tornar industrial.

Foi neste lugar, inicialmente na avenida Thomas Edison, próximo ao rio Tietê que foi instalada a empresa Cia. Industrial Polpa de Madeira – CIPOLMA, um empreendimento do empresário imigrante Elias Zarzur que tinha interesses em vários setores da economia além do ramo de papel com a Cia. Santista de Papel, a Cia. Industrial Paulista de Papel e Papelão, atuando também no mercado financeiro através do Banco Mercantil de Descontos, do Banco Nacional da Cidade de São Paulo e de muitas outras empresas industriais.

A CIPOLMA, posteriormente, mudou-se para o outro lado do rio, onde se encontra hoje o supermercado Carrefour Limão construído em 1996.

Por volta de 1953 e já com a denominação Cia. Industrial de Papel CIPOLMA, a empresa é vendida para um grupo de empresários de origem italiana, na verdade cinco irmãos de uma família que havia imigrado para o Brasil já a algum tempo. Em fevereiro de 1924, abriram seu primeiro negócio, o Estabelecimento Graphico Irmãos Spina (nota: grafia da época) no bairro do Bom Retiro que depois se mudou para o Brás onde fizeram construir um grande prédio com entrada pela rua do Hipódromo, 720. É recordado que, em datas cívicas, no topo do prédio, eram hasteadas as bandeiras do Brasil, do Estado de São Paulo e das indústrias Spina.

Ilustração da Irmãos Spina na rua do Hipódromo, que está à direita na foto. Do lado esquerdo a linha ferroviária, com uma composição que saiu do Brás (ainda sem o Metrô)

Foi neste endereço que, depois dos cadernos tipo brochura, lançaram, em 1933 os cadernos espirais, uma novidade no Brasil e do qual diziam ter a patente, o que gerou inúmeras demandas judiciais com concorrentes. Também mantinham uma metalúrgica voltada a produzir material de escritório e, em 1952, sob a marca “De Luxe” lançam novos artigos escolares e de escritório. Recordo-me – não encontrei mais informações – que houve, em algum momento, um questionamento sobre o uso desta marca, pois como “De Luxe” poderia ser marca se é uma característica?

artigos para escritório “De Luxe”

Já em 1953 os irmãos Spina, Paschoal, Nicolino, Francisco Paulo, Miguel e Isaias resolvem diversificar seus negócios e comprar de Elias Zarzur a CIPOLMA já funcionando na avenida Otaviano Alves de Lima. Nesta época o grupo contava com mais de 2.300 funcionários e em 1957 fazem funcionar, neste mesmo endereço, uma sessão para produzir celulose.

Um fato interessante é que a CIPOLMA nunca deixou de existir, pois formalmente era dos irmãos, porém como pessoa jurídica independente era arrendada para a IRIS – Indústrias Reunidas Irmãos Spina e neste sistema permaneceu até 1977.

Mas como podemos imaginar, em plena cidade, uma fábrica de celulose? Basta lembrar que, num passado recente, a fumaça expelida pelas chaminés eram o símbolo do progresso e que não havia qualquer preocupação ou controle ambiental. Alguns lembrarão dos ônibus que soltavam tufos de fumaça negra e que os olhos ardiam por conta da poluição que se tornou insuportável na cidade já no início da década de 1970.

Vista da região do Brás e arredores com destaque para Irmãos Spina à direita e do lado esquerdo a estação Bresser-Mooca do Metrô (clique para ampliar)

A Irmãos Spina, como a unidade da marginal era conhecida, lançava ao ar o resultado da queima do “licor negro”, resultante da processo de fabricação do papel pelo sistema Kraft, uma “coisa” que era um misto de enxofre, gás sulfídrico, mercapnata e poeiras várias; isso tudo queimado produz aquele cheiro de “ovo podre” que se espalhava pela cidade ao sabor dos ventos. Para quem quiser ter esta experiência hoje em dia, é só passar pelo quilômetro 171 da SP-340 em Mogi-Guaçu.

Entre as décadas de 1950 e 1960 parece ter sido a época de ouro dos Irmãos Spina que constroem um prédio na avenida Rio Branco, 425, o Condomínio Irmãos Spina onde, no térreo, abrem o cine Normandie que tinha uma programação mais voltada para produções francesas. Tratava-se de um cinema com nada mais, nada menos do que 1.500 lugares.

O Condomínio Irmãos Spina (parte colorida da imagem) na avenida Rio Branco. O cinema (no térreo) está emparedado (clique na foto para ampliar)

Em março de 1952 iniciam-se as operações do Banco Popular do Brasil e como participantes do conselho consultivo estão Paschoal e Nicolino Spina entretanto o banco parece não ter durado muito, pois em 1960 estava em liquidação. Também a Cia. de Seguros Varejista era presidida por Paschoal Spina.

Mas alguns outros empreendimentos demonstram que os “irmãos Spina” continuavam em grande fase, pois em 1963 compram em parceria com uma empresa imobiliária uma área de 9 milhões de metros quadrados em Campinas, área esta que ainda é conhecida como Cidade Satélite IRIS e que não teve o sucesso imaginado, pois em grande parte trata-se de uma ocupação onde hoje vivem milhares de famílias. Também a construção do Condomínio Edifício Irmãos Spina – Iris (Edifício IRIS) na cidade de Santos e diversas fazendas espalhadas pelo estado de São Paulo ajudam a demonstrar a riqueza que era, então, acumulada pela família.

A Cidade Satélite Íris é um dos bairros do Campo Grande, distrito de Campinas. (Foto: Fasouzafreitas)

Desde algum tempo já se falava na saída da fábrica de São Paulo e a cidade de São Roque (área onde hoje é Araciguama) foi o lugar escolhido, sempre as margens do rio Tietê (se não polui aqui, polui lá…) e com um terreno doado pela prefeitura local. Através de uma lei de abril de 1970*, com diversos benefícios, iniciou-se o processo de uma nova fábrica.

Posteriormente, em 1973, diversos artigos da lei que beneficiavam a empresa foram revogados, voltando-se os benefícios àqueles previstos numa lei de 1966 e equiparava assim o projeto dos Irmãos Spina com outros a serem realizados no município de São Roque. De qualquer forma as obras continuaram, afinal um financiamento do BNDE (atual BNDES) foi aprovado para aumento da produção no valor de Cr$ 163.448.430 o que equivaleria hoje (IGP-DI FGV) a algo em torno de R$ 354 milhões.

A fábrica em São Roque (área que hoje está no município de Araçariguama) em fotografia de 1976

Nos anos de 1972 e 1973, por conta da pressão cada vez mais presente, a empresa mudou o processo de fabricação da unidade de São Paulo, mas pouco se resolveu, pois continuava a soltar fumaça – nunca boa – na atmosfera e foi obrigada a parar a produção

Muita pressão da municipalidade era feita por conta da poluição criada pela empresa, mas a mudança da sede de O Estado de S.Paulo para a marginal e vizinha da fábrica fez com que o jornal publicasse regularmente notícias sobre a situação e isso foi um fator importante para o encerramento da fabricação de celulose naquela unidade.

Foto do Estadão em 8/9/1972 sobre a poluição da fábrica

Outro fator que pode explicar os problemas futuros do grupo é o mercado de celulose no Brasil que teve a entrada de grandes fabricantes na década de 1970 e que vieram , sem dúvida, pressionar os fabricantes já existentes, até então grandes e que se tornaram pequenos diante de, por exemplo, a Aracruz Celulose que inicia operando em 1978 e já representando, sozinha, 25% de toda a produção de celulose de fibra curta no Brasil. Isso sem contar os anos 1980, onde uma crise generalizada tomou conta da economia do país.

Em 1976 é publicado um anúncio no Estadão com o sugestivo título de “Os irmãos Spina aprontam mais uma” onde anunciam a nova fábrica em São Roque. Neste momento Paschoal já havia morrido (1974),  os irmãos sobreviventes já não eram jovens e o número de descendentes devia ser enorme o que sempre é um fator de risco para a sobrevivência de qualquer empresa.

Estadão 21/11/1976 (clique para ampliar)

A partir deste ponto a história “sai dos trilhos” e pouco se consegue para entender o destino deste grande grupo que em 1976 era composto por seis empresas:

– Indústrias Reunidas Irmãos Spina S/A  (SP e Rio – Matriz, escritório e setor gráfico – Rua do Hipódromo, 720, Brás)
– Cia. Industrial de Papel “CIPOLMA” (São Paulo – Fábrica de Papel)
– Cia. Fábrica de Papel Petrópolis (Petrópolis, RJ – Fábrica de papel e embalagens)
– Spina S/A Celulose e Papel (São Roque – Fábrica de papel e celulose)
– Mecânica e Estamparia Unidos S/A (São Paulo – metalurgia)
– Anhembi Cia. Brasileira de Papel (São Paulo e Rio – Papéis, cartões e envelopes)

Em 1977 a CIPOLMA assume a área industrial por ela mesma (lembremos que era arrendada para a IRIS), em 1979 há uma cessão da empresa que passou a ter outros sócios e, em 1980, a publicação balanço anual do jornal Gazeta Mercantil ainda apontava que a Irmãos Spina como a 16ª fabricante de papel e celulose do Brasil por receita.

A Irmãos Spina sempre fez parte das publicações sobre as empresas no Brasil, notadamente a “Quem é quem” da revista Visão e “Balanço Anual” publicado pela Gazeta Mercantil e assim foi durante muitos anos onde aparecia, em 1975, como a 17ª empresa (pelo patrimônio líquido) do setor de papel e celulose, porém em 1980 já apresentava prejuízo.

No início de 1981 surge uma situação interessante e porque não dizer surpreendente, pois as Indústrias Matarazzo – IRFM, já numa situação financeira bastante delicada, compra a fábrica de celulose de São Roque que, segundo nos explica o balanço da empresa, seria uma operação “…que resultará em maior integração do nosso parque de industrialização de papel…”.

Já em 1982 encontramos uma nota, numa reportagem sobre a situação da indústria gráfica, dizendo que estão fechando a gráfica (havia uma concorrência de grandes empresas que passaram a ter seus próprios parques gráficos – p. ex. bancos), e em 1983 há uma cisão parcial da IRIS quando foi criada a Participações e Empreendimentos Florestais Spina S/C Ltda. (empresa já baixada).

O que restou da antiga fábrica de São Roque (Araçariguama) em ruínas, na fotografia atualizada de satélite (Google)

E assim está registrada e recuperada a história que envolve pioneirismo, mudanças de percepção sobre o progresso e um pouco do passado da nossa São Paulo que julguei que merecia ser contado. O resto virou fumaça…

Notas:

– Dos irmãos Spina, Miguel (1910-1993), foi um membro importante e sempre lembrado, assim como alguns seus familiares, na formação, participação e desenvolvimento da Congregação Cristã do Brasil – CCB, onde foi membro ativo no Brás. É lá que se localiza a sede da entidade.

– CCB News (via Facebook) – 16/05/2020 “…Bom, vou tentar resumir sobre a família Spina. Esta família se mistura com o início da CCB: O irmão Louis Francescon era Italiano. Quando veio em São Paulo, testemunhou um Italiano por nome Gregório Spina. Ele e sua esposa moravam no Bom Retiro (na rua da Graça). Fizeram da casa deles a primeira sala de oração da CCB aqui em São Paulo. Este casal, tiveram (sic) alguns filhos: Miguel Spina, Nicolino Spina, Francisco Spina, Paschoal Spina, Isaías Spina e Rosa Spina…^

– A “Irmãos Spina” teve diversas mudanças de razão social, Cia. Spina de Papéis e Artes Gráficas, Indústrias Reunidas Irmãos Spina – IRIS, Spina S/A Celulose e Papel, Irmãos Spina S/A Indústrias Reunidas, IRIS S/A etc

Veja fotos da antiga fábrica da rua Hipódromo na galeria abaixo (clique na imagem para ampliar).

Bibliografia consultada:

– Limão Bairro – Link visitado em 6/1/2024
– Milton Jung – Link visitado em 6/1/2024
– Diversas edições de O Estado de S.Paulo
– A evolução Tecnológica do setor de celulose e papel no Brasil. Campos, Ediso da Silva e Foelkel, Celso. Edição ABTCP, 2016
– Balanço Anual 1981 – Edição da Gazeta Mercantil
– Revista ANAVE – Associação Nacional dos Homens de Venda em Celulose, Papel e Derivados. Ano 3, No. 16 – out/nov/dez 1976
– Leste Oeste – Em busca de uma solução integrada. Ed. PMSP – Cia. do metropolitano de São Paulo – Metrô, Fevereiro de 1979
– “Quem é quem” – publicação da revista Visão. Edições de 1975, 1979 e 1986
– Balanço Anual, publicação da Gazeta Mercantil – Edição 1980
– Salas de Cinema de São Paulo – Link visitado em 6/1/2024
– Jornal do Comércio – RJ – Edição de 3/12/1976
– “Balanço Anual” – Gazeta Mercantil – 1981

Na foto, os irmãos Spina (Crédito: Divulgação)
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3 respostas

  1. Me lembro que lá pelos idos de 1973 a IRIS do Brás lançou três modelos de tênis parecidos com o Rainha e fizeram muito sucesso devido ao preço acessível. Não durou muito tempo.

  2. sobre a IRIS o Antigo Prédio da Gráfica Irmãos Spina (IRIS) funcionou até o começo dos anos 80 na Rua do Hipódromo no bairro do Brás.
    Fundada em 1924 no bairro do Bom Retiro produzia materiais Escolares e de Escritório como Cadernos, Folhetos e a famosa Tabuada que muitas crianças dos anos 60 e 70 chegaram a usar nas Escolas.
    Depois de ser decretada a sua falência o Prédio permaneceu de pé até meados dos anos 90, sendo demolido e hoje em seu lugar foi erguido um Conjunto de Prédios Residenciais.

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