São Paulo não passou por nenhuma grande guerra que a obrigasse a se reconstruir várias vezes, como aconteceu em muitas grandes cidades da Europa. Mesmo quando a capital paulista foi duramente bombardeada, durante a Revolução de 1924, a reconstrução foi bem menos custosa do que a do velho continente.
Mesmo assim é incrível o número de construções antigas que sequer chegaram à luz do Século XX. E entre essas, as poucas que chegaram foram demolidas entre nas duas primeiras décadas, sem deixar qualquer vestígio de sua existência.
Um ótimo exemplo é o que apresentarei neste artigo, cuja existência é desconhecida até hoje pela grande maioria dos paulistanos, do leigo ao historiador:
Antes da consagração da Avenida Paulista como o principal endereço da elite paulistana, outros endereços foram o foco destas famílias que se estabeleceram em ruas como a Florêncio de Abreu e em bairros como Campos Elísios. Alguns outros ficavam espalhados por diversos endereços da capital, como os proprietários deste magnífico palacete, que era apelidado pelos paulistanos que viveram entre o final do Século XIX e início do XX como “Castelo do Arouche”.
E o apelido não era à toa. Mesmo nos demais endereços dos ricos de São Paulo não era comum algo com tamanha suntuosidade. A disposição do terreno, localizado na privilegiada esquina da Rua do Arouche com Bento Freitas permitia que fosse admirado por vários ângulos.
De autoria desconhecida*¹, sua arquitetura lembra muito os palacetes europeus o que era uma tendência na elite paulistana. Muitas das grandes residências construídas à partir da segunda metade do Século XIX eram fortemente inspirados em catálogos de arquitetos europeus. Um ótimo exemplo é o palacete localizado na Avenida Rio Branco esquina com Alameda Glete que já publicamos no site anteriormente.
Mas quem viveu neste castelo? Bem essa pergunta é ao mesmo tempo fácil e difícil de responder. Quando se pesquisa pelo Castelo do Arouche não se chega fácil a conclusões de quem residia de fato por ali. Entretanto era sabido e amplamente divulgado que o Dr. Marcos Arruda – que inclusive é nome de rua no bairro do Belenzinho – mantinha sua clínica médica no pavimento inferior do imóvel. Naquele tempo era muito comum médicos manterem sua clínica exatamente onde moravam, em uma área separada. É bem possível que com o Dr. Arruda não fosse diferente.
Entretanto um outro nome, sem relação a Marcos Arruda também consta no endereço do castelo e neste caso como residente. Trata-se da figura de Clímaco César de Oliveira que em registros oficiais consta como sendo escrivão. Inclusive seu nome aparece em dois documentos públicos, o primeiro em um decreto da então vice-presidência do Estado de São Paulo e o segundo em uma listagem de imposto municipal (veja abaixo).
O leitor pode se questionar se é realmente o mesmo local, uma vez que no primeiro recorte está endereçado como número 3 da Rua do Arouche o seguinte como número 13. Apesar de aqui não possuir uma explicação concreta sobre isso, arrisco a dizer que em algum momento entre 1896 e 1907 (período entre os dois recortes de jornal) a numeração provavelmente foi alterada, uma vez que em outros anúncios do Dr. Marcos Arruda no mesmo imóvel o número saltou para 13, como atestam os pequenos anúncios abaixo, veiculados ambos em 1903. Notem que o estabelecimento fica localizado no pavimento inferior do castelo.
Levando em consideração que alguns outros grandes palacetes de São Paulo eram destinados a locação, tal qual o que foi conhecido como Palácio do Trocadero, é possível que este Castelo do Arouche tinha mais de uma função. Servindo de residência e de consultório ao mesmo tempo e de pessoas diferentes.
O curioso é que este imóvel tão rápido quanto surgiu desapareceu, sendo que à medida que se avança nas pesquisas em jornais e revistas das primeiras décadas do Século XX, as menções a ele desaparecem por completo não sendo possível apurar o que determinou o fim de tão imponente construção.
Contudo pouco antes de desaparecer por completo o Castelo do Arouche surge em uma fotografia de 1919 do mesmo álbum que a imagem acima, porém bastante modificado e quase irreconhecível. Pegando-se em detalhes é possível confirmar que trata-se da mesma construção.
Comparando as duas fotos é possível observar que em pouco mais de vinte anos não só castelo sofreu profundas alterações, como a própria Rua Bento Freitas que agora mais parecia uma alameda. Já o imóvel perdeu seu torreão e o terceiro andar, figurando de uma maneira bem mais modesta.
E o castelo com toda certeza estava em seus momentos finais pois em 1924 no mesmo terreno em que ele se encontrava foi inaugurado o imóvel que viria a abrigar a Casa Triângulo*², já extinta. Felizmente neste caso a construção sobreviveu e segue lá até os dias atuais, abrigando uma farmácia no térreo e um pequeno hotel no andar superior.
Em 2020 juntamente com outras construções vizinhas a antiga Casa Triângulo foi tombada pelo Conpresp como patrimônio histórico de São Paulo.
NOTAS:
*1 – Em alguns textos assinados na internet há a menção de Josias Ferreira de Almeida Camargo como seu construtor. Entretanto não encontramos esse nome em nenhuma de nossas pesquisas. Caso algo novo surja este artigo será atualizado.
*2 – Apesar do imóvel que abrigou a Casa Triângulo ter sido inaugurado em 1924 a mesma já estava localizada neste endereço, conforme atesta a lista telefônica de 1920, publicada em abril daquele ano e cujo número era 4003.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo 1887/1894/1919 – W. Luiz P. de Souza
S. Paulo Volume II – Menotti Levi Editor
Correio Paulistano – Edição de 3 de março de 1893
Correio Paulistano – Edição de 19 de setembro de 1907
Correio Paulistano – Edição de 2 de abril de 1920
O Combate – Edição de 2641/1924
Respostas de 18
Interessante a mencao a Florencio de Abreu. Ela mesmo apresenta caracteristicas arquitetonicas de um logradouro cheio de mansoes urbanas.
Muito interessante essa história. Uma São Paulo sobre a outra, sobre a outra…..
Mas, será mesmo que o Clímaco residia no imóvel? Sendo o Marcos Arruda um médico, é natural que morasse bem, em uma construção magnífica como esta. Porém, um escrivão tinha tanta “bala na agulha” como um doutor, a ponto de morar em um castelo no auge de sua suntuosidade? Aliás, o que seria essa profissão? Escrivão de polícia?
Agora, o castelo era espetacular, assim como o “novo” imóvel! Imagina ambos por dentro! Quantos detalhes e portas secretas para descobrir (não seja ridículo!)!!!!
Boas! Acredito que neste caso trata-se de Escrivão dono de Cartório, o que hoje também chamamos de Tabelião, cujos ganhos mensais nem se comparam aos dos escrivães de polícia. Abs!
Certo, Alberto! Valeu!
Triste, ver fotos antigas de São Paulo é tão irreconhecível como uma foto de Hiroshima antes de 1945.
Curioso isso de a casa ser voltada para a… esquina! Aqui no Rio já vi algumas raras assim. E aí em SP, salvo engano, o castelinho da Rua Apa, segue esse “modelo”.
Tenho 48 anos. Quando vejo fotos do antes e desta época que vivo, fico deprimido. Modernidade não me faz bem. Se tivesse máquina do tempo, voltaria, viveria e morreria naquela época.
Você precisa procurar um psicólogo
Excelente a materia. Parabéns .
Será que todos sentem um misto de prazer e revolta ao ler diversos posts por aqui, como eu? Imensa beleza que desperta minha curiosidade de entender como coisas tao magníficas simplesmente deixaram de existir!
Parabéns , Douglas pelo brilhante artigo. Há muitos anos procuro notícias sobre o Castelo, inclusive entrevistando vizinhos atuais que infelizmente nada sabem. Do outro lado da Rua, na esquina com a Rua Sta.Isabel,existe um casarão formidável do começo do século XX, hoje ocupado por uma Sociedade de Umbanda.
Infelizmente muita coisa errada acontecia nos nossos cartórios e delegacias, bem mais do que se imagina! Minha herança de família do meu bisavô sumiu completamente e foi parar na mão de um parente porque houve manipulação dos dados em cartório e não houve advogado que conseguisse reverter isso! isso é só um pontinho perto das histórias escabrosas e bem reais que aconteceram num passado não muito distante aqui em São Paulo e no antigo município de Santo Amaro!
Douglas, como sempre, excelentes matérias. O chamado Castelo do Arouche pertencia a Josias de Almeida Camargo. A parte superior do edifício foi demolida e reconstruída por Clímaco de Oliveira, seu proprietário em 1904.
Obrigado pelas informações que não encontrei em lugar algum. Poderia dizer a fonte ? Muito obrigado.
Será que pra ter essa vida precoce do castelo não pode ter sido algum problema de construção, pois tiraram um andar e a torre (talvez uma tentativa pra aliviar a estrutura) antes de ser totalmente demolido?
O lugar onde ficava não era decadente (era um ponto que vivia uma expansão residencial e econômica da cidade) e mesmo se não fosse mais residência e poderia facilmente virar até uma Mesquita, pois chegavam muitas famílias muçulmanas messa época e em regiões próximas.
Quem eram os proprietários do Castelo do Arouche em SP.
Que perda, amigos!