Muita gente tende a achar que a região paulistana conhecida como Glicério é um bairro. No entanto é na verdade uma parte da Liberdade, na região central de São Paulo. Essa confusão é feita pelo fato de que a prefeitura trata essa porção do bairro com desdém, enquanto a área mais identificada com a cultura oriental recebe investimentos e atenção pública. É um silencioso e infeliz apagamento da memória negra e histórica que luto contra desde que fundei o São Paulo Antiga. O sobrado que vou contar a história hoje é uma resistência que você precisa conhecer.
Oficialmente localizado no cadastro predial municipal (IPTU) na rua dos Lavapés, observando a imagem e desconhecendo essa informação é bem difícil de precisar qual seu endereço correto, isso se dá pela sua posição estratégia no bairro da Liberdade que lhe confere o apelido de sobrado das cinco esquinas.
O apelido surge pelo fato de ele estar em uma posição que é possível vislumbrar cinco ruas que desembocam neste pequeno largo, a saber: rua do Glicério, Lavapés, Sinimbu, Tamandaré e Glória. O mapa abaixo apresenta as ruas para que você possa compreender:
Se já é um tanto incomum um largo com essa concepção geográfica, notem através do mapa que por muito pouco sobrado não ficou localizado em seis esquinas. A região, apesar de pouco difundida pela Secretaria Municipal de Cultura, é rica em memória, tradição e identidade paulistana, com forte apelo para a cultura negra e nas religiões afro brasileiras.
Nesta esquina, no início do século 20, era muito comum a prática de uma atividade chamada roda de tiririca, uma brincadeira antiga muito similar à capoeira, que se mistura com os sons dos batuques que eram produzidos por sambistas e engraxates, esses últimos produzindo a sua música batendo em seus instrumentos de trabalho.
A rica memória cultural desta esquina não fica apenas na tiririca, mas entra na história do samba paulistano com relatos que apontam que Madrinha Eunice criou ali a escola de samba mais antiga da capital, a Lavapés, que foi fundada em 1937. Indo para o aspecto religioso, as cinco esquinas é um local de muita energia para religiões de matriz africana, que usam encruzilhadas (ou encruza) para oferendas a Exu e Pomba gira, com as mais variadas funções como proteção, prosperidade, descarrego e que são chamadas de despacho.
Tanta cultura, história e simbolismo reunido em um único lugar merece um destaque todo especial pelo poder público, no entanto a única marca deixada pela Secretaria Municipal de Cultura no espaço trata-se da placa do projeto Memória Paulistana (foto anterior). No mais nada é feito por lá, sendo inclusive uma esquina bastante negligenciada pela prefeitura, sendo constantemente observada com muito lixo. Recomendo a leitura deste documento sobre a região e arredores, basta clicar aqui.
Esse lugar merece uma atenção maior, inclusive com estímulo para o dono do sobrado em fazer sua revitalização, com isenção do IPTU. Aliás, faz-se necessário e urgente alterações nas leis municipais de tombamento e patrimônio histórico, de maneira que proprietários de bens culturais seja beneficiados por isso, uma vez que a atual lei é defasada e tende a ser uma punição ao dono, especialmente se ele não for uma pessoa de posses.
O sobrado é uma típica construção do início do século 20, com moradia no pavimento superior e portas comerciais no térreo. Em mais de um século de existência este imóvel já abrigou os mais variados tipos de estabelecimentos, como açougue, instalação e manutenção de ar condicionado e, atualmente, uma loja de refrigeradores e máquinas de lavar de segunda mão.
Será que ainda veremos esta esquina tão importante para São Paulo um dia revitalizada? Eu tenho esperança que sim. Abaixo, veja mais fotos do sobrado: