Durante este delicado período de quarentena tenho aproveitado alguns momentos livres para organizar toda a biblioteca de imagens do São Paulo Antiga, especialmente no que se diz respeito a fotografias que registrei e por algum motivo esqueci de anotar o endereço.
Hoje em dia ao fotografar pelo celular ou mesmo pela câmera fotográfica acabamos por ter a localização salva automaticamente (ao menos no meu caso) graças ao GPS, mas quando fiz as fotos deste imóvel que apresento aqui neste artigo – clicadas em 2008 – este serviço ainda não era algo que se tinha em mãos a todo momento.
Eu sempre andava com um caderninho bolso – que aliás tenho até hoje – mas neste dia específico que fotografei este imóvel eu o esqueci em casa e por isso nunca lembrei onde tirei as fotografias, ficando encostado no servidor. Felizmente agora damos luz a ele:
Está localizado nos números 71 a 75 da Rua Brigadeiro Machado, no Brás, bem próximo à Avenida Rangel Pestana e, desconsiderando o estado de conservação, repare bem na arquitetura peculiar deste imóvel e notará que é um tanto quanto incomum. O que teria sido este lugar tão estranho ?
Graças a colaboração de vários leitores conseguimos ir mais a fundo de modo a descobrir o nome do local e também como sua fachada era originalmente e o que parecia ser uma construção um tanto quanto misteriosa era bem mais normal do que se imaginava.

Construído na primeira metade dos século 20, o lugar abrigou por décadas o Edifício Teatral Guglielmo Obderdan, que além de servir de palco para o teatro amador, oferecia cursos de alfabetização de operários e também dispunha de informativos sobre acontecimentos nacionais e internacionais, servindo como núcleo de comunicação. Resumindo funcionava como uma sólida base de apoio a trabalhadores, seus familiares e interessados em geral.

Originalmente construído para abrigar um templo maçônico, o imóvel posteriormente foi adquirido pela Sociedade Italiana de Mútuo Socorro Guglielmo Oberdan. O passado relacionado à maçonaria explica bem a fachada com colunas junto à entrada e o pelicano no frontispício.
O imóvel permaneceu sem grandes alterações até meados da década de 1970, preservando seu amplo salão. O estudo de tombamento do local surge em 1980 quando o local já começa a apresentar sinais de deterioração e seu proprietário, Mario Farina, havia transformado o antigo teatro em uma moradia coletiva similar a um cortiço.

Inicia-se então um longo embate entre o proprietário do imóvel e o CONDEPHAAT onde o proprietário tenta por diversas vezes interromper o processo de tombamento, que é mantido.
A partir daí ocorre uma demolição irregular de parte do prédio, que acaba por desabar e vitimar um transeunte que veio a óbito. Até que finalmente um incêndio acaba por destruir seu telhado em 1985 e deixou o prédio consideravelmente destruído, a ponto de ser irrecuperável.
Após o ocorrido o imóvel segue como espaço de moradia coletiva até meados da década de 1990, quando é desocupado por completo e tem suas portas e janelas emparedadas. A área dos porões por sua vez são abertas e alargadas virando pequenos pontos comerciais.
Em 2008 quando visitamos a área e fotografamos o imóvel (vide a foto que abre o artigo e a imagem abaixo) funcionava um salão de cabeleireiros administrado por imigrantes bolivianos.
O curioso é que as transformações sofridas no imóvel de 1985 para cá deixaram o imóvel com um aspecto um tanto quanto peculiar e o velho teatro passou a chamar a atenção por parecer um templo, o que ele foi realmente em seu princípio. O pelicano seguia lá na fachada como que se observando os ciclos de vida da construção, até que em 2010 tudo veio abaixo dando lugar a um estacionamento e apagando definitivamente um fragmento muito importante do passado do Brás.
É lamentável que isto tenha ocorrido, mas fica claro que a nossa política de tombamento precisa ser revista e modernizada, caso contrário casos trágicos como este continuarão frequentes.
E se você é leitor frequente do São Paulo Antiga então deve ter notado que este nome Guglielmo Oberdan já foi mencionado aqui alguma vezes. Isso porque é o mesmo no dos famoso Cine e Teatro Oberdan, localizado há poucas quadras deste local.
Esse era um irmão menor do famoso Oberdan que mencionei no parágrafo acima, palco de uma terrível tragédia na década de 1930.
Artigo atualizado em 05/05/2020 com a colaboração de diversos leitores.
Bibliografia consultada:
* Processo CONDEPHAAT 21324/1980
* Destombamento, valor cultural e apagamento de memória: estudo de caso do Teatro e da Sede da Sociedade Italiana de Mutuo Socorro Leale Oberdan. – Soares, Carolina Pedro
* Teatro Operário na Cidade de São Paulo – SMC 1980 – Vargas, Maria Thereza
* Mapa do teatro amador da Cidade de São Paulo – ECA USP – link visitado em 04/05/2020
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