A Vila João Migliari

Existe um antigo ditado popular que diz: “Quem não rouba ou não herda não vale uma merda”. A frase é com certeza um exagero mas para escrever este artigo que vos apresento aqui cunhei um outro ditado que calha bem com a história que contarei: “Quem herda, às vezes faz merda”.

É o caso dos envolvidos na sórdida e vergonhosa demolição do conjunto de sobrados de relevante valor histórico conhecido como a Vila João Migliari.

clique na foto para ampliar

Observando a fotografia acima, tirada em 2018, não fosse os prédios no centro da imagem poderia até passar como uma cena dos anos 1960. Uma rua tranquila, sobrados impecáveis, um Fusca estacionado e jovens brincando na rua. Uma composição de cenário cada dia mais rara de ser ver em São Paulo, especialmente no bairro do Tatuapé cada dia mais adensado.

A cena de um domingo de 2018 ensolarado contrasta totalmente com a cena de outro domingo, cinzento e chuvoso, de agosto de 2019 onde o que restava da vila foi quase que totalmente obliterado por tratores movidos à diesel e ganância:

O cenário de destruição do vídeo que acabaram de assistir traz uma pergunta: porque no Brasil herdeiros não dão valor ao legado de seus antepassados ?

O que leva uma pessoa ou uma empresa esquecer toda a história de uma vila como essa, do legado de seu avô e bisavô e, principalmente, o legado que estes deixaram para a cidade ? A resposta costuma ser uma só: dinheiro.

São pessoas pertencentes a uma elite acéfala, que é incapaz de enxergar a relevância de uma patrimônio histórico para si e o restante da população, porém na primeira oportunidade – e não são poucas – pegam um avião para visitar as “casas velhas da Europa”.

Vista parcial da vila, que não devia nada a muitas vilas europeias (clique para ampliar)

A vila da Rua João Migliari abrigou por décadas uma enorme diversidade de moradores e posteriormente adaptou-se a realidade mais recente, onde cada vez menos pessoas moram em casas, com a abertura de vários estabelecimentos comerciais por ali, como barbearia, doceria e escritórios.

A vila quase chegou ao fim em sua totalidade no cinzento e chuvoso domingo de 1 de setembro de 2019, mas na verdade seu fim (ou sua morte) foi anunciada lá atrás em outubro de 2015, data em que de acordo com o relato de ex-inquilinos faleceu o que parecia o último a se importar com a vila: Bruno Lembi.

Na foto de 1957, Bruno Lembi é o primeiro da direita.

Entre o falecimento de Lembi e o fim quase que total da vila foram apenas 4 anos, talvez o tempo de se resolver documentações, inventários para finalmente colocar abaixo o sonho uma geração passada.

Em março de 2019 a primeira leva de demolição levou ao chão metade da vila, a rapidez foi tão grande que poucos dias depois já com o terreno limpo um estande da Porte Engenharia, velha conhecida nossa aqui no São Paulo Antiga por ter erguido o Lister Tower um edifício feioso que parece uma estaca no coração da Penha.  Aquela torre até ganhou apelido carinhoso de “Monstro da Penha”.

A ideia por ali é construir um tal de eixo platina, uma série de edifícios grandes e de arquitetura duvidosa em ruas que claramente não comportam o volume de tráfego que estes monstrengos trarão a região. Isso sem contar a ausência de investimentos na malha viária, nos ramais de esgotos e por ai vai. Uma má ideia sem tamanho.

Mas voltando à vila da Rua João Migliari, o que aconteceu nos últimos meses e especialmente na virada de agosto para setembro foi uma ode ao banditismo, com desrespeito à lei, truculência, ameaça a integridade de ativistas e até mesmo de inquilinos dos charmosos sobradinhos.

Operários continuam demolindo mesmo com a obra embargada pela prefeitura (clique para ampliar)

Ameaças estas que surtiram efeito para a maioria dos inquilinos, já que a maioria deles deixou o local mesmo sabendo que com seus contratos de locação até poderiam continuar. Porém e o medo de seguir em frente e algo lhe acontecer ? Nem todos suportam esta pressão.

Mas foi da iniciativa de um inquilino da vila, Ivan Vasconcelos dono de uma barbearia e de um morador do bairro, o arquiteto Lucas Chiconi, que surgiu um movimento inicialmente tímido, mas que rapidamente cresceu e agregou mais e mais pessoas preocupadas com um único objetivo: salvar a Vila da Rua João Migliari.

E eles até teriam conseguido mais, não fosse a morosidade do Departamento de Patrimônio Histórico de São Paulo (DPH) em colocar na pauta de votação o tombamento da vila, que foi levado ao órgão em abril deste ano. A morosidade não é culpa de quem lá trabalha mas de quem governa, já que vão anos e anos que não ocorre contratação de novos quadros o que deixa o órgão deficitário e lento, do jeito que construtoras e incorporadoras adoram.

A vila e ao fundo uma torre recém construída: contrastes urbanos (clique na foto para ampliar)

E a demolição no final de semana, véspera da votação do tombamento que seria na segunda seguinte, mostra também outra coisa triste. Há nestes departamentos públicos pessoas infiltradas pelas construtoras, pois o vazamento da votação levou aos tresloucados proprietários começar a demolição às pressas, de forma tão odiosa quando aquelas ocorridas na Avenida Paulista na década de 1980.

A vila em 1954 com moradores posando para foto (crédito: Márcio de Praia Grande)

O que se dizia a todos os cantos é que a área das casas demolidas desta vez também teriam sido vendidas para a Porte Engenharia, tal qual o ocorrido na outra metade da vila levada abaixo em março. A empresa porém, vem negando essa informação nas redes sociais.

Uma pesquisa na base dados de IPTU da Cidade de São Paulo revelou que o local ainda está no nome da Bruno Lembi Empreendimentos, nome anterior da Voga Empreendimentos LTDA, cujos diretores são Bruno Lembi Neto e outros familiares.

Vista parcial da vila a partir da Rua Padre Estevão Pernet (clique para ampliar)

Ao menos até o momento a pequena porção de sobrados da outrora grande vila está protegida. Sabe-se até quando os proprietários, que já desrespeitaram proibições anteriormente, vão seguir o que a lei manda. O que se sabe é uma coisa só: a comunidade e os moradores do Tatuapé estão unidos pela proteção do pouco que restou.

O ideal ali seria a desapropriação do terreno para a construção de uma praça, algo muito útil naquela densamente ocupada área do bairro e que é a próxima luta dos moradores da região. Já há vereadores e deputados estaduais interessados em auxiliar os moradores nesta proposição.

Vamos aguardar as cenas do próximo capítulo. Atualizaremos artigo à medida que surjam novidades.

VEJA MAIS FOTOS DA VILA ANTES DA DEMOLIÇÃO(clique na miniatura para ampliar):

NÃO SE TRATAVA DE UMA VILA ABANDONADA

Alguns até podem pensar “poxa, mas o cara tem direito de ganhar dinheiro e não ficar empacado com aquelas casas velhas”. O pensamento até faz sentido em um primeiro momento, mas basta olhar para as várias fotografias da vila neste texto e ver que isso não se emprega a este caso.

Não se tratavam de casas moribundas e caindo aos pedaços ou de uma área ocupada ilegalmente por terceiros. Tratava-se na verdade de uma vila em excelente estado de preservação, com todos os seus sobrados ocupados em uma rica diversidade de atividades, com residências, lojas e escritórios.

Arrecadava-se ali um bom dinheiro em aluguel, lembrando que os imóveis estão em uma área valorizada do bairro do Tatuapé. Porém o vil metal, sempre ele, parece nunca estar em quantidade suficiente nos bolsos da pessoas, a ponto do legado de avós e bisavós se tornarem irrelevantes.

EMPRESA TEM VÁRIOS IMÓVEIS RELEVANTES PARA NOSSA CIDADE

Ao pesquisarmos o nome Bruno Lembi Empreendimentos foi possível constatar que o patrimônio imobiliário em nome deste grupo é muito grande. Nada de mais até ai, mas o que realmente preocupa-nos como interessados em preservar o patrimônio histórico de nossa cidade é que vários imóveis são de arquitetura e histórico muito relevantes para a nossa cidade. Dois deles já citados aqui no São Paulo Antiga e estão localizados nas Ruas Marcos Arruda e Paulo Andrighetti, respectivamente no Belenzinho e Pari.

Ao menos essas duas vilas acima mencionadas estão protegidas pois foram incluídas no processo de tombamento na concorrida reunião do CONPRESP realizada em de 2 setembro de 2019. Mas existem outras.

Agora o próximo passo é listar quais outros imóveis são igualmente relevantes e protegê-los.

QUEM FOI JOÃO MIGLIARI ?

Quem for até o Pari para conhecer a vila da rua Paulo Andrighetti vai notar que há uma rua particular bem no meio do lote. E esta rua tem o seguinte nome: Travessa Maria Parente Migliari. O que esta mulher tem em comum com João Migliari ? Eles eram marido e esposa.

Falecido em outubro de 1951, João Migliari foi uma figura bastante conhecida e importante no meio automobilístico paulistano. Durante alguns anos presidiu a atualmente extinta Sociedade Beneficente dos Chauffeurs, criada em 1911 e que cuja sede era localizada na Rua do Carmo, no bairro da Sé. A instituição surgiu inicialmente para a defesa e apoio aos motoristas de São Paulo, em uma época em que ainda não haviam direitos trabalhistas.

João Migliari está nesta foto porém não foi possível identificá-lo (clique para ampliar)

Migliari foi uma figura de destaque também no meio automobilístico, sendo conhecido por atuar como um respeitável e disputado mecânico e preparador de carros de competição. Ele manteve uma oficina mecânica por muitos anos no número 985 da Avenida Celso Garcia.

Ao tentarem destruir a vila da Rua João Migliari por completo, seus proprietários não só estavam apagando parte da memória arquitetônica da cidade. Estavam também por apagar para sempre o legado do construtor desta vila.

João Migliari faleceu em outubro de 1951.

Notas:
*1 – Dados públicos disponíveis para consulta através da plataforma online GeoSampa.
*2 – Dados públicos disponíveis para consulta através da Junta Comercial do Estado de São Paulo.

Bibliografia consultada:

  • A Vida Moderna – Edição 0353 (1919) pp 13
  • O Combate – Edição 04311 – 27/01/1927 – pp 6
  • Diário da Noite – Edição 08231 – 24/10/1951 – pp 10
  • A Gazeta – Edição 06173 – 01/09/1926 – pp 7
  • Correio Paulistano – Edição 22925 – 18/05/1927 pp 18
  • Correio Paulistano – Edição 27693 – 11/07/1946 pp 7
  • A Gazeta Esportiva – 29/03/1957 pp 12
  • O Estado de S.Paulo – 22/10/2015 pp 19
  • Diário Oficial do Município de São Paulo – Ano 52 – Número 10 / suplemento – pp 1, 206
  • Diário Oficial do Município de São Paulo – Ano 64 – Número 166 – pp 1, 17 e 18

ATUALIZAÇÃO – 23/10/2023:

Uma boa notícia para o patrimônio histórico paulistano. Não só essa mas as duas outras vilas pertencentes aos mesmos proprietários foram finalmente tombadas como patrimônio histórico paulistano, como atesta a publicação abaixo veiculada em jornal de grande circulação e também no Diário Oficial do Município de São Paulo.

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