Em outro artigo, sobre o Trem da Cantareira, comentamos o fato de que o trem que está na Praça IV Centenário onde outrora funcionou a Estação de Guarulhos, nunca foi utilizado nesta linha. Então, para quem ficou curioso, chegou a hora de contar a história de dona Joaninha a locomotiva que dá graça ao local.
Para falar sobre as origens e a história desta intrigante e bela locomotiva, convidamos o nosso colaborador Leandro Guidini, que além de especialista sobre trens e autor do excelente blog Vapor Mínimo, é maquinista com larga experiência em locomotivas a vapor.
João Bottene, o gênio da mecânica, e Joaninha:
Por Leandro Guidini
Para contarmos a história desta locomotiva, temos que citar um importante nome, por vezes esquecido, que é João Bottene, o gênio da mecânica. João era filho de imigrantes italianos, chegados ao Brasil em maio de 1888. Seu pai, Pedro Bottene, era especialista em ferramentas e implementos agrícolas, não demorando muito para que saia da lavoura e comece seu pequeno negocio, na cidade de Piracicaba, denominado “Bottene & filhos”, onde fabricavam charretes, arados, enxadas e parafusos sob a marca “Estrela”.
O jovem João desde cedo ajuda sei pai e aprende o ofício na oficina conciliando seu tempo com os estudos, demonstrando grande interesse pela mecânica. Pelos bons serviços prestados, a Bottene & Filhos ganha fama e logo entra para o ramo da manutenção de locomotivas e barcos a vapor. Consegue, nos anos 1920, um contrato exclusivo com a Estrada de Ferro Sorocabana para a manutenção de suas locomotivas, tendo sido construído um desvio ferroviário para dentro de sua oficina
Porém, uma crise política faz com que a EFS cancele seu contrato anos mais tarde, deixando sua firma em situação ruim. Por volta de 1937, faz um acordo com a família Morganti, dona das usinas Monte Alegre e Tamoio, durante a grande expansão da indústria açucareira, e vende sua oficina para eles, tornando-se o gerente e carregando consigo todo o seu pessoal para o novo endereço na usina Monte Alegre, em Piracicaba.
Por demanda da usina, em 1938 constrói a primeira locomotiva inteiramente nacional, batizada como “Fulvio Morganti”, para trabalhar na Monte Alegre, em bitola de 60cm Bottene não parou por ai, construindo e aprimorando outras locomotivas.
Seu segundo grande feito foi a construção de uma segunda locomotiva, esta para trabalhar na Usina Tamoio – na região de São Carlos – , com bitola de 1 metro, utilizando algumas peças de sucata de uma antiga locomotiva da EFS (chassis, rodas e cilindros de vapor), sendo inteiramente construída uma nova caldeira, tanques de água, cabine, depósito de lenha e truque traseiro, tudo isso nas novas dependências da oficina na Usina Monte Alegre. Pesava 150 toneladas e conseguia transportar até 1300 toneladas de cana.
A esta locomotiva, foi dado o nome de “dona Joaninha”, em homenagem a dona Joana Morganti, dona da usina. Sua inauguração deu-se na segunda quinzena de janeiro de 1940, em grande comemoração celebrada com todos os membros da família Morganti, além diretores e funcionários da Usina Tamoio.
A ferrovia da Usina Tamoio terminava na estação Tamoio (no município de Ibaté, próximo a São Carlos) da Cia Paulista, onde os trens carregados de açúcar faziam a baldeação. Funcionou até meados dos anos 60, quando a ferrovia foi fechada e, pelo menos o ano de 1976, esta locomotiva esteve nas dependências da usina, quando foi comprada por um sucateiro da região de Guarulhos.
A fotografia abaixo mostra dona Joaninha em 2000 já em seu novo lar, em Guarulhos:

Crédito: Divulgação
O sucateiro que adquiriu a locomotiva, fez uma parceria com a prefeitura guarulhense, tornando a “dona Joaninha” um monumento na Praça IV Centenário, em frente a antiga estação do Tramway da Cantareira. Por estar diante da Estação Guarulhos, e não ter qualquer informação afixada no local, muitos cidadãos guarulhenses pensam equivocadamente que trata-se de uma locomotiva da antiga linha da Cantareira.
A DONA JOANINHA HOJE EM DIA:
Por Douglas Nascimento
Com a experiência de quem conhece mais de 70 cidades paulistas afirmo: poucos municípios tratam tão mal sua história e patrimônio histórico como Guarulhos. Apesar de ser rica e uma das maiores economias não só do Estado de São Paulo mas do Brasil, Guarulhos parece viver apenas em função do Aeroporto Internacional e fadada a ser uma cidade dormitório para a vizinha São Paulo, desprezando a olho nu suas principais riquezas culturais.
Com a histórica locomotiva não é diferente. Avistar a saudosa dona Joaninha no coração da Praça IV Centenário causa uma tristeza e revolta sem tamanho. Tristeza de vê-la cada vez mais destruida e apodrecida e uma indignada revolta em saber que nada é feito para preservá-la ou mesmo restaurá-la.
Após quase duas décadas no local sem a devida manutenção preventiva e cuidados técnicos, a locomotiva está quase que completamente podre. Há focos de ferrugem por toda a parte, desde a caldeira até seu interior. Além disso, sua chaminé está há pelo menos cinco anos amassada. Segundo o funcionário de um hotel próximo, está assim desde que um tronco de árvore caiu sobre ela.
Como se isso não bastasse, a locomotiva está instalada ao lado de diversos equipamentos de playground, onde diversas crianças costumam brincar, especialmente nos finais de semana. Como a locomotiva não é isolada e não há qualquer controle para proibir crianças e adultos de subirem nela, o risco de se machucar, cortando-se gravemente e até de contrair tétano é muito alto, como mostram as duas fotografias a seguir, da soleira e assoalho de dona Joaninha.
Não consigo imaginar como pode existir tamanha irresponsabilidade em uma instalação pública. A praça é realmente muito bonita e bastante limpa, mas deixar a locomotiva neste estado lamentável é ultrajante. Evidente que agora a manutenção será muito mais cara do que se fosse preventiva, mas paciência, o que não pode é deixar deste jeito.
Por fim fica também a crítica a Prefeitura de Guarulhos que passado tanto tempo da instalação desta locomotiva na Praça IV Centenário, tendo passado já diversos prefeitos e secretários de cultura diferentes, até hoje nunca se dignou a colocar uma placa descritiva sobre a locomotiva e seu criador, João Bottene, dando a milhares de guarulhenses que por ali transitam diariamente a falsa impressão histórica de que trata-se de uma locomotiva do Tramway da Cantareira.
Veja abaixo mais três fotografias de dona Joaninha (clique para ampliar):
Como diria o jornalista Boris Casoy, isto é uma vergonha.
ATUALIZAÇÃO – 06/03/2019:
Cinco anos depois de publicarmos esta matéria voltamos até a Praça IV Centenário para ver a situação em que a locomotiva se encontra. Ficamos muito decepcionados ao constatar que tudo piorou e muito.
Saiba mais: www.saopauloantiga.com.br/locomotiva-historica-apodrece-em-guarulhos/
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