A história de quando centenas de gatos viviam no Vale do Anhangabaú

Você provavelmente já ouviu falar em algum momento do parque do gato ou mesmo da favela do gato, um local outrora insalubre que agora possui um conjunto de habitação social junto à marginal do rio Tietê, no bairro do Bom Retiro. Mas já parou para pensar a origem desse nome? Para entender como esse nome surgiu temos que voltar ao final da década de 1950 para o centro histórico de São Paulo, onde naquele momento surgiu ao mesmo tempo uma atração turística involuntária e um problema para o município: a Praça dos Gatos.

Jovem observa os gatos da praça Ramos de Azevedo no início da década de 1960

Esse local é bem conhecido do paulistano. Trata-se da parte inferior da Praça Ramos de Azevedo, onde se encontra a fonte dos desejos e outros monumentos. Não se sabe com exatidão quando o local se transformou em “Praça dos Gatos”, contudo pesquisando em jornais antigos é possível encontrar notícias sobre bandos de gatos vivendo por lá em 1957. Foi quando o local que se transformou em área de descarte de filhotes que seus donos julgavam indesejados, em uma época que castração gratuita e direto animal eram praticamente inexistentes.

Com isso em 1961 a praça já estava tomada por gatos, que habitavam ali na casa de centenas, uma vez que se reproduziam sem controle. Não era um cenário romântico de se ver, com gatos frequentemente atropelados no trânsito agitado do Vale do Anhangabaú ou mesmo no próprio viaduto do Chá, quando se aventuravam lá para cima em busca de alimento. Outros morriam de doenças e até mesmo de fome, em uma época que ração animal era rara.

Vale do Anhangabaú e praça Ramos de Azevedo na década de 1950: Cenário de muitos atropelamentos de gatos

PROTEÇÃO AOS BICHANOS

Na início da década de 1960 uma idosa começou sozinha a cuidar diariamente das centenas de gatos da praça. Era uma mulher de origem alemã chamada Mary Ada Lindsey Gericke, moradora de Higienópolis. Viúva e solitária (seu filho, engenheiro morava em Manaus) cozinhava logo cedo para depois pegar um bonde rumo ao centro para cuidar dos bichanos. Passava boa parte do dia com eles, alimentando-os com uma dieta que consistia de frango, peixe e arroz.

Em 1968 a senhora Gericke e outras amigas que amparavam os gatos ganharam os noticiários ao expulsar da praça, com bolsadas, calouros da faculdade de medicina da USP, que atendendo a ordem de um trote de veteranos organizaram um “safari” para caçar gatos no local, que seriam levados à universidade para serem usados como cobaia. A ação repercutiu mal e foi reprimida pelas cuidadoras, pelo zelador da praça e até pela polícia. Uma das calouras ficou ferida ao ser agredida pelas senhoras que cuidavam dos bichanos. Com o passar dos anos a senhora Gericke faleceu e outras pessoas continuaram sua missão.

Mary Ada Lindsey Gericke em sua única foto disponível, publicada no extinto jornal Correio Paulistano em 1961

O FIM DA PRAÇA DOS GATOS

Na década de 1980 o local era tão saturado de gatos que o então prefeito de São Paulo, Mário Covas, foi aconselhado a resolver a questão definitivamente por assessores e vereadores. Apesar disso parte da opinião pública achava que os gatos deveriam permanecer ali pois eram uma atração turística. Alguns comparavam os gatos da Praça Ramos de Azevedo aos esquilos do Central Park, em Nova York.

Na galeria abaixo é possível conferir algumas cenas extraídas de jornais paulistanos que mostravam os diversos gatos que perambulavam livremente pela praça do Anhangabaú e seu convívio pacífico com as crianças que frequentavam o local.

Foi quando Covas conheceu a atriz aposentada Jane Hegenberg, nome artístico de Eugênia Schaffman Hegenberg, que tal qual Ada Gericke décadas antes, igualmente nutria um amor incondicional pelos gatos. Ela comprava comida, remédios, pagava veterinário quando a UIPA não podia ir e tentava arrumar lares para os bichanos.

O prefeito então explicou que era preciso revitalizar a Praça Ramos de Azevedo e retirar os animais dali, nem mesmo pássaros ficavam por lá pois os gatos os matavam. Seriam plantadas novas árvores, floreiras e não poderia começar a obra com os mais de 300 gatos que se estimava ter na praça. Para resolver a questão Mário Covas cedeu uma área ociosa no Bom Retiro, junto à marginal do Rio Tietê, para onde os animais foram transferidos. Era o fim da Praça dos Gatos e o início do Parque do Gato.

Gato na fonte dos desejos, na então chamada praça dos gatos no Vale do Anhangabaú

RUMO AO BOM RETIRO

No novo local Eugênia Schaffman Hegenberg juntou-se a voluntários e funcionários para cuidar dos gatos e posteriormente até cães. Alimentar cerca 800 animais não era fácil, muito menos barato. Em reportagem da época a cuidadora estimou gastar 2 milhões de cruzeiros com alimentação, fora medicamentos e salários para funcionários que ficavam no local. Tudo isso segundo pessoas que conheceram Hegenberg saia do próprio bolso da atriz aposentada.

Dois acontecimentos, porém, fariam a coisa desandar. Em 1992 a prefeitura de São Paulo solicitou a devolução do local, pois a cessão tinha sido apenas “de boca” e Erundina pretendia criar no local uma praça e conjuntos habitacionais. Entretanto nada iria se comparar ao escândalo que surgiria a seguir.

O PARQUE DOS HORRORES

Uma denúncia terrível abalava a cidade nos primeiros dias de fevereiro de 1993. Uma equipe de televisão do SBT, com o jornal Aqui Agora, chega ao local para averiguar a denúncia de uma funcionária do parque dos gatos. O local havia se transformado em um campo de extermínio de gatos saudáveis em uma tentativa, segundo denunciantes, de diminuir a população felina e, consequentemente, os gastos.

O caso tomou grandes proporções e a polícia passou a investigar o caso. Logo também surgiram outras denúncias, como de uma mulher que deixou seus gatos para serem hospedados durante uma viagem e desapareceram. A denunciante e uma funcionária apresentaram à imprensa e a polícia fotos da câmara de gás com diversos animais mortos.

A investigação apurou que gatos, doentes e sadios, eram colocados em um tanque de alvenaria e este ligado a um botijão de gás carbônico. O tanque era fechado com uma pesada tampa de madeira e então abria-se a válvula, para em questão de minutos liquidar cerca de 20 ou 30 animais. Colocados em sacos eram descartados no rio Tietê.

A responsável pelo espaço na época chegou a reconhecer a matança de animais, mas garantiu para a imprensa e em depoimento que apenas exterminava animais com doenças contagiosas e atribuiu as denúncias à ma fé de uma funcionária que queria prejudicar o trabalho que ela realizava no local. Com o tempo o caso foi esfriando e desapareceu do noticiário.

Anos mais tarde, já sem o abrigo de gatos, o local se transformou em uma favela e posteriormente foi urbanizado, transformando-se em um bonito conjunto de moradia popular. Uma estátua em homenagem aos felinos poderia ser instalada na entrada do conjunto residencial ou nos arredores para que esse fato não fosse esquecido e jamais repetido.

Bibliografia consultada:

* O Estado de S.Paulo – Edição de 27/4/1967
* O Estado de S.Paulo – Edição de 22/9/1967
* O Estado de S.Paulo – Edição de 24/1/1968
* O Estado de S.Paulo – Edição de 18/7/1968
* O Estado de S.Paulo – Edição de 16/4/1992
* O Estado de S.Paulo – Edição de 6/2/1993
* Correio Paulistano – Edição de 15/5/1961

Vista atual do conjunto de edifícios do Parque do Gato no bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo
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Respostas de 17

  1. Que reportagem linda Sr.Douglas e que lindo ter resgatado essa memória da cidade de São Paulo.
    Graças ao seu empenho e talento as gerações mais novas ficam sabendo de fatos e curiosidades que nortearam aquela época.
    Memória resgatada,obrigado!

  2. Não conhecia essa história, mas é muito bom saber sobre nossa cidade.
    Obrigada pela pesquisa e por compartilhar conosco.

  3. Espetacular, que maravilha essa postagem, eu me lembrava vagamente da praça dos gatos, mas depois perdi a continuidade da história que agora foi revelada nessa matéria.
    Agradeço e vou divulgar!

  4. Há muitos anos estava assistindo à ópera La Traviata e uma gato fez um “belo dueto” com o soprano…

  5. Grande Douglas, como de costume, uma excelente matéria! Será que uma estátua de gato na cor amarela localizada na estação São Bento, na saída de acesso ao Vale do Anhangabaú, tem alguma relação com a Praça dos Gatos?

  6. Nós anos 2000 ainda haviam muitos gatos por lá, na volta da escola eu gostava de fazer o caminho passando pelo vale do Anhangabaú só para ver os gatos. Havia um senhor barbudo que cuidava deles, há até uma foto do Carlos Moreira deste senhor junto aos gatos no Vale do Anhangabaú

  7. Nasci no início dos anos 90 e não sabia desses acontecimentos no centro de São Paulo. Obrigada, por resgatar esta história.
    Admiro muito o seu trabalho por aqui.

  8. Que terrível o dito ser humano, ninguém foi punido. Mataram a sangue frio, Erundina que bestial

  9. Lembro muito bem de ir com minha mãe na década de 80 no Mappin e passar pela praça para ver os gatos. Na época eu tinha uns 10 anos. Era realmente um ponte turístico. Eu jamais iria imaginar esse trágico desfecho, quanto sofrimento aos gatos! As pessoas deveriam conhecer mais sobre isso, evitando maus tratos aos bichanos.

  10. Muito interessante a história. Realmente faltou um monumento aos gatos para não esquecermos deste acontecimento histórico.

  11. Antigamente o ser humano não era muito civilizado, e também muito frios sem sentimentos em relações aos animais. Os humanos foram com o tempo se formando e hoje já mudaram muito com o tratamento de gatos, cachorros e outros animais. Mas ainda tem muito por fazer pelos animais. Imagina que teve pessoas que usaram gás para exterminar os gatos, se lembrarmos a história o nazismo também fez a mesma coisa com os judeus na Alemanha. Muito triste tudo que aconteceu. Mas caminhamos para um dia os animais ter total segurança e proteção deles.

  12. Bom dia, matéria muito bem elaborada com informações precisas situando e reportando o contexto da história em cada década específica mas o desfecho não foi dos mais sensatos, senão genuinamente desproporcional como tomada de política pública: exterminar os pobres inocentes em câmaras de gás improvisadas, no mínimo uma péssima, eu diria asquerosa ação pública da gestão Luiza Erundina, porque seria mais coerente terem criado uma ação de castração coletiva dos bichanos e depois criar uma rede de incentivos à adoção dos felinos nossos irmãos menores, fica a dica para possíveis novos focos de infestação tanto de gatos como de cães, uma excelente sexta-feira pra todos nós com muita saúde e paz. Amém

    1. Olha Ronaldo, permita-me discordar de você.
      A Erundina fez o certo ao remover os gatos do local, por questões de saúde pública e saúde animal. Ela inclusive cedeu um espaço para abrigar os animais.
      A culpa é de quem transformou o (particular) local em um câmara de torturas e da polícia que não prendeu ninguém.
      Leia o texto de novo, não culpe quem nada tem a ver com a história.

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