Mesmo depois do choque da pandemia, o comércio de arte no Brasil não apenas sobreviveu como ganhou musculatura. De acordo com a 7ª Pesquisa Setorial da Associação Brasileira de Arte Contemporânea (ABACT/ApexBrasil), as galerias, leilões e feiras nacionais movimentam mais de R$2,9 bilhões.
Se comparado com o ano anterior, o salto anual é de 21% que coloca o país com 0,89% do mercado mundial. Quanto mais dinheiro circula, maior é a cobrança por provas de autenticidade e histórico das peças, exigência que repercute em São Paulo, onde eventos como a SP-Arte já atraem cerca de 35.000 visitantes a cada edição, segundo entrevista da fundadora Fernanda Feitosa.

O dilema da proveniência e porque a blockchain se encaixa nesse problema
O Brasil mantém hoje 1.810 objetos tombados cadastrados como desaparecidos no Banco de Bens Culturais Procurados (BCP) do Iphan, sendo que 1.702 permanecem sem paradeiro e apenas 108 foram recuperados desde 1998. Internacionalmente, a Interpol contabiliza quase 57.000 obras em seu banco global de peças roubadas.
A vulnerabilidade não se restringe a museus. Já foi relatado “furtos fora de controle” no Cemitério da Consolação, onde esculturas de Victor Brecheret desapareceram sem deixar rastro, caso que ilustra como lacunas de procedência afetam inclusive o patrimônio a céu aberto.
A blockchain funciona como um livro-razão público no qual cada transação gera um bloco criptografado, selado pelo anterior. A estrutura impede retro-edições e permite rastrear qualquer item desde o primeiro registro. É exatamente o que a Convenção da UNESCO de 1970 recomenda quando diz ser “incumbência de cada Estado proteger o patrimônio cultural garantindo informação completa sobre origem e histórico”.
Ao migrar os certificados físicos, muitas vezes frágeis ou perdidos, para uma cadeia de dados distribuída, colecionadores reduzem o risco de falsificações, e museus conseguem provar a legitimidade de futuras aquisições com poucos cliques.
Da Christie’s à Bienal: Rastreabilidade em ação
O ponto de virada ocorreu em 13 de novembro de 2018, quando a Christie’s gravou em blockchain a venda da coleção Barney A. Ebsworth, totalizando $318 milhões de dólares. A parceria com a startup Artory marcou o primeiro leilão de grande porte registrado integralmente em cadeia de blocos.
Desde então, museus como o Smithsonian e a National Gallery testam certificados digitais, enquanto casas de leilão brasileiras já exigem QR codes vinculados a registros de procedência em catálogos impressos. E boa parte das plataformas que unem blockchain e arte recebe aporte de projetos de criptoativos de baixo valor unitário.
É o caso das micro coins promissoras que captam recursos pulverizados para bancar módulos de escaneamento 3-D, smart contracts de royalties e marketplaces tokenizados. Quem compra esses tokens participa das rondas de financiamento de art techs brasileiras, como a Artk Capital, que já tokeniza fatias de esculturas em bronze de Bruno Giorgi e bustos do período imperial.

Drex, SP-Arte, ID-Art e a integração com o Iphan
O Banco Central colocou a tokenização no centro do Piloto Drex, prevendo a liquidação de ativos “nativamente digitais” até o fim de 2025 e a entrada de novos participantes em 2026. A infraestrutura deverá conversar com bases de dados patrimoniais, por isso, em janeiro deste ano o Iphan abriu uma API pública que permite anexar o número de registro de uma peça ao bloco que formaliza uma transferência.
Na prática, um colecionador que adquirir uma gravura de Lasar Segall poderá, na mesma operação digital, atualizar a posse junto ao órgão federal e acionar um seguro automatizado. A cadeia exibe resultados em tempo real nas grandes feiras. Na SP-Arte deste ano, meia dúzia de galerias apresentou obras com chip NFC encapsulado na moldura.
Ao aproximar o celular, o visitante era redirecionado para a página blockchain da peça, onde conferia data de criação, exposições anteriores, restauros e notas fiscais anexadas em PDF. Além disso, a Interpol levou a experiência ao bolso do investigador. O app ID-Art, gratuito para Android e iOS, dá acesso móvel ao banco das 57.000 peças furtadas.
Permite, ainda, comparar fotos tiradas na hora com imagens arquivadas, o reconhecimento visual roda diretamente no aparelho e devolve alertas instantâneos. Desde que ganhou suporte a português em 2024, o aplicativo já foi baixado por delegacias de patrimônio em sete estados, segundo a Polícia Federal.
Questões regulatórias e educacionais à frente
Nada disso elimina a obrigatoriedade de due diligence humana. Se a primeira entrada no blockchain for falsa, ela permanecerá falsa para sempre, o famoso garbage in, garbage out. Cartórios paulistas ainda exigem autenticação em papel para bens tombados, enquanto marchands hesitam em divulgar preços de compra e venda.
Quando o colecionador puder, do sofá, escanear o QR code de um quadro, consultar a linha do tempo em blockchain, confirmar que ele não consta nas listas de peças roubadas da Interpol e concluir o pagamento em Drex num contrato inteligente, a arte brasileiro dará um salto rumo a transparência