A Cantareira e a falta de água na história de São Paulo

Quando vemos o noticiário atual e observamos o colapso no abastecimento de São Paulo através do Sistema Cantareira, podemos pensar que no passado “tudo era melhor” e a falta d`água é uma consequência atual, resultado de uma combinação de estiagem e incompetência governamental. Porém, os problemas estruturais do abastecimento de São Paulo já correm por quase dois séculos e nunca foram totalmente resolvidos.

Neste artigo mostraremos através de matérias jornalísticas do século XIX como eram as crises de abastecimento daquela época até a chegada da Cantareira, e também os problemas que esta passou até ser encampada pelo governo paulista em 1892.

A CARÊNCIA PRÉ-CANTAREIRA

Antes da chegada do serviço de água corrente encanada na cidade de São Paulo a coleta se dava principalmente nos vários chafarizes espalhados pela cidade, como os instalados no Largo da Misericórdia e Largo do Piques.

Na ilustração, coleta de água em chafariz em São Paulo, século 19
Na ilustração, coleta de água em chafariz em São Paulo, século 19

Foi em 1862, porém, que pela primeira vez a notícia de falta d’água chegou a imprensa paulista como mostra, com dureza, uma nota no jornal Correio Paulistano de 25 de outubro daquele ano:

Divulgação / Correio Paulistano

E esta carência de água e ineficiência de abastecimento em São Paulo não para por ai, e continuaria a perseguir o paulistano por pelo menos mais 15 anos. A capital paulista, mesmo sendo uma cidade ainda muito pequena, crescia sem poder atender a população adequadamente no fornecimento de água potável.

Em 1864 o problema volta à tona com outra reportagem do mesmo jornal, que observava não somente a precariedade do serviço, como também os defeitos nos encanamentos, que deixam os chafarizes com vazão fraca de água:

Divulgação / Correio Paulistano

Embora a região da Cantareira já fosse conhecida pela sua riqueza de nascentes, córregos e até cachoeiras desde o século XVI, no começo da segunda metade do século XIX a área era ainda apenas um conjunto de fazendas e chácaras, e também rotas de tropeiros que faziam comércio com São Paulo e outras regiões do país. Não se explorava os mananciais da região para fins de abastecimento municipal.

Em 1867 a penúria que estava o abastecimento de água potável na capital levou a discussão do uso da Cantareira para abastecer a cidade de São Paulo. Em um artigo do jornal Correio Paulistano daquele ano, críticas aos anos e dinheiro desperdiçados em vão na busca da solução da falta de água e a eminente necessidade de canalização das águas disponíveis na região da Cantareira:

Divulgação / Correio Paulistano

ENFIM, SURGE A COMPANHIA CANTAREIRA

Somente após 10 anos depois destas reclamações enfurecidas de falta de água é que finalmente surge aquela que seria a grande solução ao crítico abastecimento de água potável da capital paulista: A Companhia Cantareira de Água e Esgotos.

A iniciativa partiu de empresários e políticos que se uniram para criar uma empresa privada para cuidar do “abastecimento das aguas da cantareira, e esgotos de aguas servidas e materias fecaes” (grafia da época).

Vários ilustres atenderam ao convite de Coronel Rodovalho para que se dirigissem a sua residência para fundar a nova empresa:

Divulgação / Correio Paulistano

E assim nasceu a empresa que tornou possível explorar e canalizar as águas da Cantareira e que cerca de 15 anos mais tarde também tornaria possível o transporte ferroviário pelo Tramway da Cantareira.

A inauguração se deu no ano seguinte, em 1878, e contou com a presença do Imperador Dom Pedro II e diversas autoridades do império, estado e município. A pedra fundamental foi carregada e colocada pelo próprio Imperador.

Divulgação / Correio Paulistano

Inicia-se então, em ritmo acelerado, a construção de dois grandes reservatórios de acumulação para represamento dos mananciais na Serra. E em maio de 1881 foram concluídas as obras para abastecer de água, de maneira bastante satisfatória, o dobro da população paulistana na época, que era de 30.000 habitantes. Era definitivamente uma reserva modelo.

Crédito: Divulgação
A Cantareira no final do século XIX (clique para ampliar)

Com a inauguração do fornecimento de água oriundo do reservatório da Cantareira, em 1882 alguns chafarizes da cidade já começaram a receber água do novo manancial e, em 1883, 71 imóveis da capital passam a receber água, também beneficiados pela inauguração de outro grande reservatório, na Consolação, com 6500 metros cúbicos de capacidade.

SURGEM OS PRIMEIROS PROBLEMAS:

Divulgação / Correio Paulistano

Pouco mais de 10 anos depois de inaugurada, a Cantareira já começa a apresentar problemas no abastecimento de água da capital, relatados nos mais variados bairros paulistanos. O recorte acima, de 1892, atesta um abastecimento insuficiente no bairro da Mooca, aliado a qualidade ruim da água e mau cheiro.

Os problemas começam a aparecer em vários outros pontos da cidade, até que neste mesmo ano a Companhia Cantareira toma uma medida que iria acirrar os ânimos da população paulistana: a demolição dos chafarizes públicos.

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Esta decisão é tomada para forçar a população a instalar a rede de água nos domicílios, visando o aumento dos lucros da empresa que era privada e precisava crescer. Alguns dos chafarizes realmente chegam a vir abaixo enquanto outros sobreviveram.

Mesmo assim, 1892 parece ser o grande ano de crise para a Cantareira e relatos de falta d’água, fornecimento ineficaz, mau cheiro e, principalmente, aumento do preço começam a pipocar nos jornais de São Paulo:

Divulgação / Correio Paulistano

Divulgação / Correio Paulistano

Tais reclamações, aliadas a dificuldades da empresa em ampliar os investimentos em melhorias do sistema e a impopularidade atingida com a desativação de alguns dos chafarizes da cidade, levam ao Estado Paulista a encampar e assumir a empresa, decretando o fim da Companhia da Cantareira.

Surgia então a RAE (Repartição de Águas e Esgotos da Capital), que de início ampliou as aduções de água e a captação e proteção das nascentes, adquirindo áreas na região a partir de 1890. Esta área corresponde ao Parque Estadual da Serra da Cantareira, com 7.916 hectares, sendo decretada “Reserva Florestal do Estado”.

Os progressos da RAE foram tão notáveis que em dois anos realizaram mais obras e ampliações do que a velha companhia fez em uma década. A Cantareira tornou-se tão eficiente que logo tornou-se uma vitrine, destacando-se em 1899 a visita do então presidente da Argentina, Julio Roca, que tirou foto oficial no local:

Presidente da Argentina, Julio Roca, é o quinto sentado da esquerda para a direita (clique para ampliar).
Presidente da Argentina, Julio Roca, é o quinto sentado da esquerda para a direita (clique para ampliar).

Na mão do governo paulista, a Cantareira seguiu em ampliação com a construção de aduções nos anos de 1893, 1895 e 1898. Em 1907 foram concluídas as obras da adutora do ribeirão Cabuçu.

Apesar das constantes obras no Cantareira o sistema em toda sua trajetória até os tempos atuais, mais notadamente nos anos 1920, quando foi criado um plano de emergência para desviar águas da adutora do Guaraú para o reservatório do Belenzinho que estava agonizando. Problemas de abastecimento também ocorreram na década de 40 e no ano de 1958.

O Sistema Cantareira antigo continuou funcionando até a década de 1970, quando se iniciou o aproveitamento das águas do Rio Juquerí, hoje denominado Sistema Cantareira. Foi nessa década, precisamente em 1972, que surgiria a Sabesp.

Abaixo outras fotografias da Cantareira tiradas entre 1895 e 1905:

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Respostas de 34

  1. Achei muito oportuno o resgate dessa história. Seu trabalho de pesquisa é valioso! No caso do Rio de Janeiro, também temos muitos exemplos, no passado, de calamidades provocadas pela falta d’água. Um dos episódios mais curiosos aconteceu em 1889 e ficou conhecido como “Água em seis dias”, cujo protagonista foi Paulo de Frontin com sua providência emergencial (e rápida) para o problema. De fato, o registro que fica é o de que uma solução segura e duradoura para o problema do abastecimento d’água nas grandes cidades brasileiras ainda está por ser feita!

  2. Bela reportagem; meus parabéns! É preciso agora, reportar os mais de trezentos córregos, rios e nascentes soterrados em São Paulo, tais como o Córrego Saracura sob a avenida 9 de Julho e o Ribeirão de Itororó, sob a 23 de maio que formam o Ribeirão Anhangabaú a desaguar no Rio Tamanduateí. Forte e fraterno abraço; sucesso por aí!

  3. reportagem maravilhosa!…..qdo estudei no Colégio Salete, em Santana….”cabulávamos” aula para pegar o trenzinho de Cantareira, e passa algumas horas passeando na natureza…

  4. Parabéns pela reportagem! Revoltante como os problemas que dependem do governo do nosso país, se acumulam e agravam por décadas !

  5. Muito bom artigo se Alckmin e o fanfarrão do Hadad lessem, talvez pudessem fazer algo que preste! Abraços.

  6. O problema descrito aqui não era a falta literal de água, como a que passamos hoje. Mas sim a má distribuição dela para os moradores de São Paulo. São Paulo do século XIX. não enfrentou onda de calor tão forte e a baixa precipitação pluviométrica que passamos hoje.

    1. Concordo com Marcelo de Souza,a culpa é sim do governo atual e seus diretores,não fizeram o que deveriam fazer durante a suas gestão,não é só culpa da natureza, é culpa deles pois não envestiram em melhoras na área,para não passarmos por tamanha crise que vamos passar, tem exemplos de países lá fora que investem e colhem resultados, pois sei que essa crise é mundial,devemos cuidar do nosso planeta melhor,parabéns pela matéria ficou demais.

  7. Excelente matéria!

    Isso serve para calar a boca de muitos que dizem que “São Paulo vive a pior crise hídrica da história” e mostrar que a água sempre foi um gravíssimo problema na cidade.

  8. Parabéns pelo texto que não fugiu a seu escopo histórico, sem deixar de dar uma alfinetada muito justa no descaso constante – e também histórico – com que nossas autoridades tratam a população.

  9. Muito Interessante este seu artigo. me fez voltar à minha infância ao lembrar de piqueniques que minha família gostava muito de fazer no Parque da Cantareira…

  10. Nossos problemas sõ vão se agravando ao longo dos anos. E o governo do estado , seja qual for o partido, não toma as providências necessárias. Ficam esperando São Pedro resolver…….UMA VERGONHA.

  11. Obrigado por todo esse material de informação, esperamos que mais cidadãos se atualize e fiquem atentos aos problemas que teremos de enfrentar.

  12. Douglas, infelizmente nesse caso específico, o povo continua a procura dos culpados, enquanto não acha, prefere culpar Deus e libertar Barrabás.

  13. Este governo e seus antecessores, atingiram a quintessencia da falta de vergonha, incompetência, mentira e caradurismo ao tratar da questão da falta d`gua. Nenhum governo minimamente decente fica a mercê da natureza para que o povo tenha um abastecimento regular de água, sem estar em polvorosa, quando assolado por uma seca. Se as desculpas dadas por eles procedessem, certos lugares e países, como California, Israel e o próprio Alentejo, etc, seriam tâo ou mais miseráveis que os estados do nosso nordeste. Tratando-se de São Paulo, em particular, sem dúvida somos motivo de piada para os estrangeiros, pois como é possivel a política de captação, armazenamento e distribuição de água para mais de quarenta milhões de habitantes, sendo vinte e dois milhões só na grande São Paulo.? Diante dessa situação calamitosa, vejo no horizonte nuvens negras, infelizmente não de chuva.

  14. Há anos o ex-governador Oréstes Quércia, em uma reunião íntima, proferiu uma frase que ficou na história: “QUEBREI O BANESPA, MAS FIZ O MEU SUCESSOR” – se referindo à sua vitória eleitoral de então.
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    Desta vêz é o governador Geraldo Álckmin quem “faz história”: SEQUEI A CANTAREIRA, MAS ME REELEGÍ”, em referência às suas negativas de racionamento de água em S.Paulo, durante a campanha eleitoral de 2014.

  15. Falta de Água é como outros problemas : sempre existiu e sempre irá existir. O que faz a diferença é como lidamos com a a situação. Alguns apenas criticam e aproveitam pra fazer palanque. Outros ficam apenas justificando e culpando São Pedro etc. O fato é que , como na base da maioria de nossos problemas , falta planejamento por parte dos governantes , que de quebra tratam um assunto técnico como sr fosse uma questão politico-eleitoral. Por outro lado falta educação , principalmente ambiental, à população que trata todos os recursos naturais como infinitos. Muitos povos aprenderam com grandes crises e guerras. Tomara que a crise que está apenas comecando sirva de aprendizado pra governantes e população.

  16. Gostaria de saber onde estavam os especialistas em recursos hídricos e os professores da USP, UNICAMP e demais institutos de pesquisa quando as represas e reservatórios de São Paulo estavam abarrotadas de água??? Tem muito PROFESSOR DOUTOR no assunto por ai. Mas vir até a população para ENSINAR COMO SE ECONOMIZA ÁGUA, ninguém pensou! Há 25 anos conheci a Europa e por ter tios e primos residindo na Alemanha e Suiça há 50 anos, aprendi como economizar água desde a lavagem de um carro, lavar louças e economizar no banho. Eles já passaram por muitas guerras e aprenderam com a escassez de recursos. No Brasil, sempre ouvíamos: “_ O Brasil está deitado sobre o maior aqüífero do Mundo!!!! Tudo é o maior do mundo no Brasil! E o povo: só gastando água! Espero, em Deus, que este aprendizado seja para sempre. E que, com o aumento progressivo dos combustíveis fósseis, deixemos mais nossos carros em casa, pois não teremos mais ruas, avenidas e estradas para caber tantos automóveis e caminhões. Onde está o transporte férreo, forte no mundo inteiro? Onde foi parar o plano de expansão das ferrovias? NUNCA EXISTIU!!!

  17. Um dos maiores legados da Companhia Cantareira, além da represa, foi a Estrada de Ferro da Cantareira, a mais antiga e negligenciada linha de trens de subúrbio de São Paulo, cantada em verso e prosa por Adoniran Barbosa por nela ficar a mítica estação do Jaçanã da música Trem das Onze, e que em priscas eras cogitou-se sua eletrificação e extensão subterrânea até a Praça da República, convertendo-se assim naquela que seria a primeira linha de metrô de São Paulo, um dos inúmeros projetos de construção de metrô jamais realizados.

  18. Muito obrigada pela informação subministrada, atualmente estou fazendo o mestrado em ecologia na USP e meu projeto está sendo desenvolvido na represa Paiva Castro do sistema Cantareira, estou recopilando informação para minha dissertação, porque considero fundamental o histórico da problemática da carência da água e as consequências que isso tem traído na qualidade da água.

  19. Gostei muito da reportagem, fico triste porque falam muito pouco sobre meu bisavô sendo que teve tanta importância para São Paulo.

  20. Meus parabéns ao Autor, muito nos enobrece a respeito da nossa história regional. É um pouco do muito que temos para resgatar.

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