O recente episódio grotesco envolvendo o congolês Moïse Kabamgabe, espancado até a morte em um quiosque de praia no Rio de Janeiro, faz parar para pensar no seguinte ponto: quantas outras atrocidades, com morte ou não, já foram cometidas no Brasil ao longo de sua história e não ficamos sequer sabendo ?
E pensando nisso lembrei de um caso bizarro ocorrido na São Paulo de outros tempos que deixa muito claro que a índole mórbida de muitos dos brasileiros de hoje em dia provém do passado escravagista e preconceituoso que nos precedeu. Trata-se da história de Apyla, o Xavante.
Mas antes de falar sobre Apyla, vamos voltar no tempo até a segunda metade do Século XIX e chegarmos às portas do primeiro museu da Cidade de São Paulo, o Museu Sertório.
Fundado aproximadamente em 1883 pelo Coronel Sertório – irmão de Major Sertório – que hoje é nome de importante rua da Vila Buarque, na região central da cidade, o museu começou logo após o fim da carreira de Sertório como vereador de São Paulo. Ao deixar a câmara municipal ele praticamente dedicou-se exclusivamente ao museu, financiando suas aquisições e atividades através de lucros obtidos de suas transações imobiliárias em São Paulo.
O museu era localizado no antigo Largo de São Gonçalo – ou Largo do Palácio – atualmente conhecido como Praça Dr. João Mendes, e sua área de exposições encontrava-se no térreo de sua residência.
Com o intuito de produzir e difundir conhecimento científico em uma São Paulo que começa a crescer e desenvolver, Sertório contratou um viajante naturalista – igualmente colecionador – chamado J.P. Motta Júnior para realizar junto dele ou mesmo sozinho diversas expedições para coletar objetos raros e curiosos para serem expostos em seu museu.
As conquistas e coletas para o Museu Sertório obtidas pela dupla Sertório-Motta Júnior foram inúmeras que fizeram o museu crescer em relevância e acervo, sendo naquele final de Brasil Império um importante avanço cultural em um país repleto de analfabetos.
O CASO APYLA
Porém, em 1886, o museu se veria no centro de uma bizarra polêmica, até hoje muito mal explicada, e que o tempo quase apagou. O museu foi conhecido por usar da violência para obter parte de seu acervo, especificamente aquele ligado às coisas indígenas como objetos de tribos e pontas de flecha. A prática hoje considerada deplorável era aceita normalmente naqueles idos do Século XIX. Mas algo ultrapassaria todos os limites com o chegada ao Museu Sertório do indiozinho Apyla e os restos mortais de seu pai.
Em 26 de agosto de 1886 o naturalista Motta Júnior voltava de sua expedição ao interior paulista com uma nova “aquisição” o jovem índio xavante Apyla de apenas 9 anos. O jovenzinho não veio sozinho, ele teve a companhia do crânio do seu pai o Cacique Anxe. Tanto seu pai, o cacique, como sua mãe a índia Faim foram assassinados sob razões até hoje desconhecidas.
Em que deixemos de lado a probabilidade de terem sido mortos pela própria expedição em busca de acervo, o que chocou a população e parte da imprensa de São Paulo à época foi o fato do jovem índio ter vindo para São Paulo para ser exposto como um acervo vivo do Museu Sertório.
Os relatos pela cidade era que o garoto era exibido discretamente pelos corredores do museu, vestindo uma farda-mirim.
Jornais como “Gazeta da Tarde”, “Diário Popular” e “Correio de Campinas” denunciaram o fato, anunciando que ele havia sido capturado na região de São José dos Campos Novos após o assassinato de seus pais.
FAKE NEWS OU ENCOBERTAMENTO ?
O caso gerou comoção e o jornal Correio Paulistano, conhecido em São Paulo desde sua fundação por ser mais governista, publicou uma matéria no dia 7 de setembro de 1886 desmentindo o ocorrido e no dia 11 de setembro volta novamente ao assunto, publicando uma carta do naturalista Motta Júnior onde ele desmente veementemente o fato, confirmando que tanto o crânio como o jovem índio estavam no museu, mas que ao menos o menino não era um objeto museológico.
Contudo o mesmo jornal Correio Paulistano em 26 e 27 de agosto publicou notas falando da chegada de Apyla. Em uma delas dizendo “Motta Júnior, ao voltar do sertão, para onde foi por conta do Museu Sertório,da capital, trará em sua companhia um selvagem, menor de 9 anos, da tribo xavantes, de nome Apyla”.
Se ele não veio pra ser exposto como “objeto” no museu, veio por qual razão ? Não sabemos! Tão logo esse assunto foi “esclarecido” por Motta Júnior naquela nota à imprensa nada mais se falou ou se ouviu falar sobre o menino Apyla, que pelo visto jamais saberemos que fim levou.
Já o museu seguiria nas mãos do Coronel Sertório até 1890 quando este o vendeu a José Teixeira Braga Júnior, um brasileiro residente na cidade do Porto que pretendia levar todo o museu para àquela cidade. Foi a pressão popular e de autoridades que impediu esse ocorrido, fazendo com que o acervo fosse adquirido pelo governo da província de São Paulo, se tornando a primeira coleção do futuro Museu Paulista que seria inaugurado em 1895. Hoje em dia parte do acervo está no Museu Paulista enquanto a maioria do seu acervo está no Museu de Zoologia da USP.
A pergunta que fica, e o próprio museu pode responder, é: onde está o crânio do Cacique Anxe ?
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Bibliografia:
Correio Paulistano – Edição de 26/08/1886 pp 2
Correio Paulistano – Edição de 27/08/1886 pp 2
Correio Paulistano – Edição de 07/09/1886 pp 2
Correio Paulistano – Edição de 11/09/1886 pp 3
A Província de S.Paulo – Edição de 31/08/1886 pp 2
Gazeta da Tarde – Edição de 27/08/1886 pp 2
Gazeta da Tarde – Edição de 13/09/1886 pp 2
O Museu Sertório: Uma coleção particular em São Paulo no século XIX (primeiro acervo do Museu Paulista) – CARVALHO, Paula Carolina de Andrade – 2014
As coleções etnográficas guarani do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP) – KOK, Maria da Glória Porto – 2018
Respostas de 4
Amigos, um conselho: evitem o uso do tão-disseminado termo “cacique”, erroneamente há muito tempo ensinado como de origem guarani: é palavra de origem de alguma língua indígena dos Estados Unidos e é preferível trocar por “chefe”. Conselho de meu falecido pai, Aryon Dall’Igna Rodrigues que foi e é até hoje considerado o maior estudioso de linguística sobre línguas indígenas brasileiras. Obrigado pela atenção de todos.
Histórias que não são reveladas pelos meios acessíveis. Através do Douglas, que aliás agradeço muito por sua disponibilidade, casos como esse podem ser conhecidos. Obrigada!?
Agradecemos por mais essa informação de nossa cidade…mas, como tudo é meio caótico, adivinha se irão encontrar o tal crânio?! Para mim, vc é uma verdadeira obra de arte….Até breve. Abraços
História envolvendo um certo mistério sobre “peças” de um museu!