Quando o assunto são livrarias São Paulo se destaca bastante, principalmente pela grande quantidade delas espalhadas por toda a cidade. Muitas delas, já citadas aqui em outro artigo, estão marcadas no imaginário do paulistano pelos mais diversos motivos, sejam eles emotivos ou mera lembrança de locais que costumavam frequentar. Entretanto uma delas, que podemos dizer que era muito mais que uma simples livraria, destaca-se na nossa história e é dela que vamos falar. Trata-se da Casa Garraux.
Fundada na década de 1860 a Casa Garraux foi a grande atividade comercial em solo paulistano do francês Anatole Louis Garraux, que chegou ao país inicialmente para trabalhar na Livraria Garnier na cidade do Rio de Janeiro. Logo que desembarcou na capital paulista, em 1858, abriu a Livraria Academica no então Largo da Sé bem próximo à Rua da Imperatriz (atual 15 de Novembro). Cinco anos mais tarde, em 1863, esse estabelecimento passaria a ser conhecido como Casa Garraux.
Mais que uma livraria o estabelecimento era conhecido por ser uma grande tentação para crianças e adultos devido à grande diversidade de produtos importados que comercializava, tal qual penas para escrita, envelopes, papéis de carta, artigos de escritório, publicações periódicas (como revistas), jogos, globos terrestre, charutos cubanos, além, é claro, de livros, muitos livros.
A casa também fazia periodicamente exposições em suas vitrines, como de plantas arquitetônicas (consta que o projeto da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo por exposta por lá) e até coisas incomuns, como relíquias da Guerra do Paraguai.
Não se sabe com precisão a data em que Casa Garraux deixa o Largo da Sé e muda-se para a Rua da Imperatriz, entretanto é certo que o fato ocorreu durante a década de 1870. Afinal em 1880 ja existia a edificação em que o estabelecimento tornou-se famoso e permaneceu até seu fim.
Localizado no atual número 250 da Rua 15 de Novembro o imóvel era inicialmente uma construção assobradada. Só receberia seu segundo piso superior anos mais tarde, em 1896, em projeto do engenheiro de origem italiana Giulio Micheli, que também tratou não só de ampliar a construção como seus ornamentos. A partir dai a fachada passou a que é conhecida nos dias atuais (com algumas alterações no térreo e no telhado).
O renome da casa era tão grande que até mesmo a Princesa Isabel o mencionou em seu diário, citando-a como “uma casa cheia de tentações para grandes e pequenos”. Mesmo assim Anatole Louis Garraux deixaria o negócio em 1876, posteriormente voltando para Paris. A partir daquele momento o estabelecimento passa por diversas trocas rápidas de proprietários até 1888 quando passa a ser administrado por Alexandre Thiollier, pai do famoso intelectual paulistano René Thiollier, através da firma Thiollier, Fernandes & Cia.
Fernandes retira-se do negócio em fevereiro de 1890, ficando apenas Thiollier, que permaneceria à frente da Casa Garraux até fevereiro de 1896, quando a vende para a firma Charles Hildebrand & Cia, este por sua vez ficando à frente da empresa até 1912.
Deste ano em diante a empresa também troca várias vezes de mãos e seus negócios vão se enfraquecendo. Embora as informações sobre este período sejam muito escassas, é possível traçar um cenário que teria levado a Casa Garraux a iniciar sua decadência: Trata-se de um período em que São Paulo passa por grande desenvolvimento, com a abertura de muitos novos estabelecimentos, inclusive livrarias e grandes lojas de departamentos como o Mappin. Provavelmente esta maior concorrência tenha sido determinante para o fim de suas atividades, que ocorreu em meados da década de 1930.
Após este período o imóvel que outrora abrigou a Casa Garraux passa a ter diversos usos, todos eles comerciais, sendo um dos mais notórios uma filial da Lojas Garbo e, mais recentemente, já no século XXI, o restaurante Bovinu´s Fast Grill.
AS ESCULTURAS QUE ADORNAM A FACHADA DO EDIFÍCIO:
Além da belíssima fachada da Casa Garraux, um outro detalhe que chama bastante a atenção de quem passa diante do imóvel são duas grandes estátuas de ferro fundido que repousam ladeando a janela central da sacada do primeiro andar. Quem seriam essas duas pessoas ?
Instaladas ali na década de 1890 as duas figuras ali representadas são respectivamente Johannes Fust (lado esquerdo) e Johannes Gutenberg (lado direito). Embora o nome do primeiro não seja tão conhecido dos brasileiros, ambos os personagens são do século XV e ligados à invenção da imprensa. Fust foi um banqueiro alemão e o primeiro a emprestar dinheiro a Gutenberg para que esse pudesse desenvolver sua invenção, um sistema mecânico de tipos móveis que deu início à chamada revolução da imprensa.
A ESCULTURA DESAPARECIDA
Volte até as imagens ´Foto 1 e Foto 2´ neste artigo e observe atentamente a fachada da Casa Garraux. Notou alguma diferença na fachada ? Se você é observador irá notar que na Foto 2 o edifício possui, em seu coroamento, uma terceira escultura que não está mais lá.
Infelizmente não se encontram fotos antigas do edifício mostrando-o de frente e poucos reparam neste detalhe. Mas se observar a imagem abaixo notarão a tal escultura com mais detalhes:
De acordo com o Luiz Eugenio Teixeira Leite, autor do blog “A São Paulo que São Paulo não vê“ esta terceira escultura seria também oriunda da mesma fundição francesa que fez as outras duas, sendo de autoria do escultor Ernest Damé (*1845 +1920) e disponível em um catálogo da Fundição Val d´Osne de 1892.
Fundições como esta produziam grande quantidade de esculturas e as colocavam à venda mediante encomenda. Possivelmente várias esculturas iguais a esta existem espalhadas pelo mundo. Uma destas cópias pode ser vista na cidade francesa de Saint Pierre d’Oléron.
Abaixo a fotografia da Rua 15 de Novembro em 1914. Observe atentamente a escultura:
A escultura é chamada em francês como Victoire Ailée, ou numa tradução direta ao português, Vitória Alada. A figura feminina é uma representação de uma deusa alada e está segurando duas coroas de louros, uma em cada mão. A planta representa a vitória nas culturas grega e romana antigas.
Abaixo você vê a escultura em uma imagem extraída de um catálogo da fundição que a comercializava:
Com a tecnologia hoje em dia disponível não é impossível refazer esta escultura, que media 2,32 metros de altura, em impressão 3D. Seria muito interessante anos depois dela ter sido removida ser instalada uma réplica em seu lugar. Quem sabe ?
Quem foi A.L. Garroux ?
Negociante francês, Anatole Louis Garraux nasceu na França em 3 de abril de 1833 e veio ao Brasil inicialmente ao Rio de Janeiro no ano de 1850 para trabalhar na famosa Livraria Garnier.
Em 1858 muda-se para São Paulo onde abre a Livraria Academia no então Largo da Sé. Posteriormente muda-se para a Rua da Imperatriz (atual 15 de Novembro) já com o nome de Casa Garraux. Ele permanece no negócio até o ano de 1876.
Anos mais tarde regressa à Paris onde viveria até falecer em 26 de novembro de 1904. Quando faleceu já era viúvo e deixou três filhas: Marie, Amélie e Sophie. Ao longo de sua vida, especialmente quando esteve no Brasil, conseguiu acumular uma grande fortuna. Seus bens declarados após sua morte acumulavam um total de 971.880 francos o que convertido para o câmbio atual seria de aproximadamente 3 milhões de Euros.
Bibliografia consultada:
* Imprensa Academia – Edição 1, ano de 1869 – pp 4
* Anatole Luis Garraux e o comércio de livros franceses em São Paulo – Link visitado em 11/07/2021
* Val d´Osne Foundry – Link visitado em 12/07/2021
* Lista Telefônica de Assinantes para o ano de 1966
Respostas de 13
Bacana, historias de São Paulo pouco divulgadas, parabéns pelo trabalho.!
A XV junto de outras ruas do Centro Velho de São Paulo sempre foi dos meus passeios prediletos no intervalo do almoço. Trabalhei nessa região entre 1974 e 1990 e nunca perdi a chance de passear. Bela reportagem, belas imagens. Quem sabe o Bovinu’s não se anima e encomenda uma Vitória Alada
Caso raro de resignificação sem descaracterização
Excelente trabalho retratando o passado de nossa amada São Paulo, minha terra natal. Trabalhei na região de 1964 até 1991, hoje vivo em Campo Grande (MS). Parabéns!
Trabalho muito bom, foi na Casa Garraux que nosso conterrâneo José Olympio, o maior editor do Brasil, começou a trabalhar em 1918 e só a deixou em 1931 para a fundar a própria livraria!
Obrigada por seu trabalho, me ajudou muito. Comprei um postal da atriz Sarah Bernhardt e ao recebê-lo vi que não era francês, mas cópia. Uma pequena inscrição indicava Casa Garroux, SP. Fui pesquisar e cheguei no seu texto.
Como foi gratificante, ler sobre a Casa Garraux! Era na casa Garraux, que meu avô, Engenheiro, Inventor, Carlos PALMER, ia de Cabo Frio RJ., comprar seus compassos, etc., para os projetos de suas invenções. Até hoje (tenho 88 anos)guardo alguns compassos, que tantos trabalhos executou. Muitos Parabéns ao autor deste artigo, Jornalista Douglas Nascimento, por ressuscitar essa bela história,
Meu Deus! Que fachada maravilhosa! Essas duas estátuas aí no nicho, mataram à pau! Nota 10!
Na Luz, junto a passarela que travessa a Avenida Tiradentes, há um edifício, sobrado branco, que hoje em dia é umas das muitas lojas para vestidos, onde há no segundo andar em um nicho, uma escultura possivelmente francesa da mesma procedência. Reparei nela uma dia atravessando a passarela no trecho da rampa, que passa muito próximo ao prédio, de onde se pode observá-la muito bem. Chama a atenção devido a riqueza e qualidade dos detalhes, uma ninfa, ou bacante, coroada com ramos de parreira. Você tem conhecimento dessa estátua?
Olá João, como vai ? Já vim sim esta estatueta que você se está se referindo. Vou ver se descubro algo mais a respeito.
História muito bem pesquisada e um prédio lindíssimo e bem conservado!
Se não me engano, o Clube de Xadrez São Paulo tem um exemplar da “Analyse du jeu des échecs” de Philidor que ainda conserva na capa o selo da livraria. O exemplar é, se não me falha a memória, de 1871.
Prezado Douglas, que trabalho excepcional você vem desenvolvendo. Sou paulistano e tenho um quase fetiche pelas memórias da cidade, pelas histórias que circulam por nossas casas, monumentos, ruas e avenidas. A Casa Garraux, ou um comércio com este nome, continuou até os anos de 1970 ou 80 em um lojão de portas altas e pé direito de 4 metros funcionando como um sebo de qualidade na Sé. Cheguei a comprar muitos livros por lá. Que história magnífica que eu acabo de aprender. Obrigado, Marco