Cemitérios são locais que aspiram diversos aspectos de uma cidade. Espaço onde dor, lástima e sofrimento podem dar lugar a diversos segmentos de pesquisas, seja no campo de estudo de crenças religiosas, genealogia ou até mesmo questões de estudos arquitetônicos de jazigos e mausoléus, além da inigualável arte tumular.
Infelizmente a maioria das necrópoles não fazem parte do roteiro histórico da cidade. Em São Paulo o único espaço mortuário que mantém um serviço de turismo cemiterial é o Cemitério da Consolação, detentor de uma das mais belas obras de caráter tumular, O Sepultamento, autoria do escultor Victor Brecheret que adorna o túmulo da incentivadora do modernismo brasileiro, Olívia Guedes Penteado.
Autor do Monumento as Bandeiras, Brecheret deixou obras não apenas no Cemitério da Consolação, mas também no Cemitério do Araçá onde uma linda escultura com quase três metros de altura e possuindo três toneladas, chamava a atenção dos visitantes em uma estreita quadra. Uma escultura que possuía nome e sobrenome: Musa Impassível.
A obra adornava o túmulo da poetisa Francisca Júlia, falecida no dia 1 de novembro de 1920. Poderia ser uma história simples, uma escultura feita para homenageá-la postumamente, mas a trajetória de Francisca Júlia e da Musa Impassível são dignas para questionar a valorização histórica do espaço cemiterial e das pessoas que ali estão sepultadas. Pessoas que fizeram parte da história da cidade e que ali estão perpetuadas. O site São Paulo Antiga pesquisou a trajetória de Francisca Júlia e de sua obra póstuma. Uma poetisa e uma escultura que nos ajudaram a desvendar mais uma história curiosa de nossa cidade.
Francisca Júlia da Silva nasceu em 1871 na antiga Vila de Xiririca, hoje município de Eldorado, interior de São Paulo. Filha de um advogado e de uma professora da rede pública, a garota nasceu com vocação literária. Aos 8 anos muda-se com seus pais pra a cidade de São Paulo, e aos 14 começa a escrever pequenos versos para o jornal O Estado de S.Paulo, logo depois para o Correio Paulistano e também para o Diário Popular.
Tanta dedicação com as palavras ocasionou na publicação de seu primeiro livro “Mármores”, em 1895. Com sua obra elogiada pela crítica, Francisca Júlia quebrou barreiras em uma época onde quem ditava as regras era o universo masculino. Nesta obra, a poetisa nos brindou com um belo poema, a Musa Impassível.
Em 1899, publica o “Livro da Infância”, destinado para as escolas públicas de São Paulo. O resultado não poderia ter sido melhor, Francisca Júlia tornou-se a percursora da literatura infantil. Logo depois vieram mais duas obras “Esfinges” em 1903 e “Alma Infantil” em 1912 com a participação de seu irmão Júlio Cesar da Silva.
A poetisa vivia uma vida simples, longe da badalação, porém com grande atuação nos circuitos literários e aclamada por diversos poetas como Olavo Bilac e Vicente de Carvalho.
Casou-se em 1909 com o telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil, Filadelfo Edmundo Munster. Em 1916, seu marido é diagnosticado com tuberculose. Neste momento, Francisca Júlia isola-se e seu lado espiritual começa a florescer. Continua a publicar seus poemas, mas agora são poucos e voltados para o lado da religiosidade. Alguns anos depois, em 31 de outubro de 1920, Filadelfo veio a falecer.
Horas depois de seu falecimento, Francisca Júlia é encontrada morta em seu quarto. Não podemos afirmar que a poetisa suicidou-se, mas dizem que a poetisa morreu por amor, pois não iria aguentar a ausência de seu marido.
A história poderia parar por aqui, mas a importância da valorização da imagem de Francisca Júlia não poderia ser esquecida.
No mesmo ano do seu falecimento, um grupo de intelectuais liderado pelo senador e mecenas e José Freitas Valle, decidem entrar em contato com o Presidente do Estado de São Paulo, Washington Luís, para encomendar uma escultura a ser exposta no túmulo da poetisa. Com o parecer autorizando a construção da escultura póstuma, Freitas Valle entra em contato com um jovem escultor que estava como bolsista em Paris. Seu nome, Victor Brecheret.
Tendo em mãos alguns poemas de Francisca Júlia, Brecheret realizou o trabalho de 1921 a 1923 em Paris. Feita em mármore, o resultado não poderia ser melhor. Uma linda escultura envolvida por sensualidade. Olhos fechados que nos remete a querer esquecer a dor da morte. Seios grandes e fartos para afirmar a importância da mulher na sociedade. Dedos e braços longos e delicados simbolizando a força e a superioridade de uma mulher que abriu segmento na literatura feminina. Nascia a Musa Impassível
O túmulo de Francisca Júlia no Cemitério do Araçá foi engrandecido com a Musa Impassível em 1923. A escultura acompanhou calmamente o desenvolvimento da cidade de São Paulo, porém a consequência do crescimento da urbanização desenfreada acabou gerando problemas para a Musa. A escultura estava se desgastando com a ação do tempo, principalmente com a chuva ácida. Sendo assim, foi necessária a sua remoção para desacelerar este processo de desgaste.
A data de 13 de dezembro de 2006, 83 anos depois de sua instalação, foi o último dia da Musa Impassível no Cemitério do Araçá. A retirada da escultura envolveu mais de 15 pessoas, um guindaste e muitos curiosos. Após mais de seis horas de trabalho, com muito esforço dos envolvidos, a escultura despediu-se do mundo dos mortos para entrar no mundo dos vivos.
A Musa Impassível continuaria despertando admiração, mas mudaria definitivamente de endereço.
Pela primeira vez na história da Cidade de São Paulo, uma obra tumular saiu do espaço cemiterial e ganhou um novo lar: a Pinacoteca do Estado, no Parque da Luz. A escultura foi tratada com todo o cuidado que uma grande Musa necessita, no caso de uma escultura, com direito a uma ampla higienização e um meticuloso processo de restauração.
O túmulo de Francisca Júlia no Cemitério do Araçá não foi desprezado. No lugar onde antes estava a escultura de mármore original, foi colocada uma réplica de bronze, permitindo aos que visitam o cemitério também admirar a beleza da obra de Brecheret.
Assim, a Musa Impassível continua a deslumbrar os olhares, seja na Pinacoteca, ou em sua antiga morada. Não há como desvincular a Musa Impassível do túmulo de Francisca Júlia, as duas estão ligadas intimamente desde o instante em que o poema foi escrito.
As palavras da poetisa foram transformadas no mármore por Victor Brecheret em traços delicados. Ele conseguiu perpetuar a história dessas duas mulheres magníficas, Francisca Júlia e sua Musa Impassível.
Apresentamos abaixo uma galeria exclusiva e inédita de fotos da Musa Impassível sendo retirada do Cemitério do Araçá, transportada e finalmente sendo instalada na Pinacoteca do Estado.
Galeria (clique na miniatura para ampliar):
Crédito das fotografias – Glaucia Garcia de Carvalho
Respostas de 30
Muito interessante! Já tinha visto essa escultura na Pinacoteca e tinha achado linda. E que bom que deixaram uma replica em bronze no lugar pro tumulo não ficar vazio.
Estoria interessante.
Os cemiterios estao cheios de obras de arte que atualmente nao se fazem mais.
Muito interessante!Parabéns pela pesquisa e obrigado por disponibiliza-la!
aplausos, aplausos e mais aplausos por tudo,por Francisca Julia mais o artista idealisador da peça e o transplante de local valeu coisas de 1} mundo
Uma história interessantíssima,um texto limpo,didático,marmóreo,completo,perpétuo.Obra prima ganhando outro espaço, mãos de gênio escultor dos mais renomados , representando uma poetisa que falece vivendo um grande amor em meio a um grande círculo de amigos, alguns deles poetas conhecidos ,Martins Fontes,Menotti del Pichia …
A história se complementa com o lançamento do primeiro livro de Chico Xavier : ” Parnaso de Além Túmulo”, onde a poetisa e escritora reaparece em um belissimo e altivo texto psicografado pelo famoso médium.
Excelente matéria ! Gostei bastante.
O curioso é que li a sua matéria na quinta-feira e no sábado eu fui à Pinacoteca. Quando passei em frente à Musa Impassível não pude deixar de lembrar a história de Francisca Júlia. Conhecer o contexto das obras e sua história enriquece o nosso olhar sobre elas. Parabéns pelo site!
Matéria muito interessante…e q maravilha darem a devida atenção a belíssima obra…ainda há esperança…
Sempre gostei muito dessa escultura. Na primeira vez que fui na Pinacoteca, fiquei uma meia hora só a observando, achei ela hipnótica! rs
Sempre admirei as obras de Victor Brecheret, e ao ler essa estória, juntamente com o da Poetisa Francisca Júlia, aplaudo a atitude do governo do Estado e a Pinacoteca por ter preservado essa estória maravilhosa e aproveitar para reiterar que continuem fazendo sempre esse maravilhoso trabalho que é o da preservação de nossas obras de arte, buscando, restaurando e salvando belas obras, ressuscitando coisas esquecidas e trazendo até perto da gente, pois ainda é tempo!! obrigado.
Pessoal, admiro a atenção e responsabilidade de preservar a obra, mas infelizmente eu acredito que não se pensou de uma forma mais adequada em conservar a história. Eu penso que essas coisas estão sendo tratadas de forma unilateral. Conforme o texto, sobre que não há como desvincular a obra da poetisa, eu discordo. Com a retirada da escultura, e mesmo colocando a cópia, foi feita uma quebra na história das duas. Se os cemitérios tem visitação, eu acredito na divulgação para que as pessoas visitem o local de história original. Se a escultura estava sofrendo com o tipo da qualidade do meio ambiente da cidade, então era necessário adequar a conservação da obra ao local original dela. Digamos o seguinte, se a obra do Cristo Redentor tiver sofrendo com erosões e impactos climáticos, será retirado do Corcovado e será colocado no lugar uma réplica? Por isso, acho questionável essa remoção!
Cristiane,
Um dos motivos da remoção é que a estátua ia ser vendida para particulares.
Foi uma decisão acertada removê-la pois evitou-se que a contemplação da obra fosse perdida, seja no cemitério ou na galeria.
Infelizmente não há uma política de proteção de obras artísticas nas necrópoles paulistanas.
Douglas, Sou bisneto de Francisca Júlia e soube da intenção de ser vendida esta obra histórica e patrimônio da cidade. Mas com certeza esta não seria concretizada, pois além da parte da família que mora no Rio de Janeiro sempre discordarmos sobre a venda, a estátua foi paga com dinheiro público, então é patrimônio do estado de São Paulo. Não tenho contato com o resto da família, que mora em São Paulo. Minha avó Flora que era filha da Francisca Júlia nunca quis ter contato com os irmãos e pode ser que eu nunca saiba o por quê, já que minha avó faleceu em 2000. A única notícia que tivemos dessa família em São Paulo, pelo que me lembre era para darmos o nosso alvará para vender a estátua. Mas este sempre foi um pedido negado. Queriam vender e obter algum lucro com a obra de Victor Brecheret. Pensávamos que poderiam concretizar a venda sem nosso consentimento pois minha parte da família nunca fomos de averiguar a situação do túmulo de Francisca Júlia, já que todos moramos no Rio. Agradeço a filha do escultor Victor Brecheret, Sandra Brecheret que encontrou a estátua antes de alguma venda ilegal e assim dar início ao restauro e a remoção. Depois deste episódio, a parte da família de São Paulo, resolveram fazer pose assinando o termo de concessão, como se tivesse contribuindo com a história da cidade e a mudança para a Pinacoteca. Lembro que minha avó tinha mandava lavar a estátua, pois ela estava muito suja. Acredito que ela era contra a remoção da estátua. Sinceramente desconhecíamos sobre a remoção e descobri uns anos atrás. Pessoalmente aprovei, pois a chuva ácida da cidade estava desgastando a estátua, mesmo esta ser feita de mármore Carrara. Indo para a Pinacoteca contribui para a resgate da memória e história da minha bisavó para São Paulo.
Eduardo, descobri uma historia da sua bisavó interessante e relacionada a Associaçao Cristã de Moços em 1904, onde meu tataravô promoveu um sarau e ela participou. Estiveram juntos. Entre em contato comigo por gentileza. A Glaucia(escritora) tem meu contato. (Vide Correio Paulistano de 20/12/1904, pág.3, titulo Sarau Litetario). Obrigado.
Eduardo. Eu sou bisneta do Julio Cesar da Silva. Gostaria muito do seu contato para falarmos…..
Karina, sou descendente de várias famílias de Xiririca. Pedagoga,Professora aposentada da Rede Municipal de São Paulo. Estive em Xiririca pela primeira vez aos 5 ou 6 meses. Atualmente estou morando em Eldorado, para onde mudei em dezembro deste ano. Meus pais nasceram aqui. Há algum tempo tenho feito uma pesquisa sobre as famílias de Xiririca,desde a sua fundação. Em um documento sobre herança verifiquei o nome de seu pai, na qualidade de herdeiro, tanto quanto foram pessoas da minha linha genealógica.
Caso haja interesse em trocarmos algumas informações mande-me um e mail ou me procure no face book.
Muito bonito seu raciocínio. Pena que, infelizmente, não é viável em nosso país. Entre os males, escolheu-se o menor – descontextualizar a obra ao mudá-la de lugar. Contudo, continua sendo admiradas por todos, especialmente tratando-se de um bem público. Há inúmeras obras no Araçá e no Consolação sendo degradadas pelo ambiente e por vandalismo. Sugiro que se empenhe em conservá-las, em vez de criticar um trabalho tão competente quanto este.
mto bom, parabéns 🙂
Olá gostaria de saber Se você tem notícias de onde está arquivado o discurso proferido por ela em 1908 na câmara municipal de Itu?
“Seios grandes e fartos para afirmar a importância da mulher na sociedade.” WHAT???
Que matéria bacana !
Parabéns SaoPauloAntiga !!!
Para mim foi muito gratificante. Não conhecia a história dessa poetiza. Obrigada por todos que participaram dessa iniciativa resgatando a história de paulistas
A poeta virou musa.
Que delicia de História, muito bem narrada!!!
Deveriam remover outras esculturas do Araçá e do Consolação e levar para a Pinacoteca. A falta de segurança e a poluição colocam em risco essas obras.
Sinceramente, muita tristeza de saber te-la tirado do cemitério do Araçá, de onde jamais deveria sair, ela deveria ficar ao lado quem lhe deu vida (claro vida de estátua).
Claro que na Pinacoteca é um excelente lugar mas não sua morada. muito pesar, chocada ao saber.
Saiu porque a família ia “passar nos cobres” vendendo pra colecionador…
E a réplica em bronze que foi colocada no lugar da original, é das mesmas proporções?
Bem, espero mesmo que essa de bronze lá permaneça…que nenhum ladrão faça a festa…
Sim, porque, nos cemitérios paulistanos, principalmente nos mais famosos/antigos, é um festival de furtos de placas e adereços valiosos e…ninguém sabe de nada, ninguém viu nada…