Sempre que alguém me pede sugestão de livro sobre história de São Paulo recomendo em primeiro lugar a obra “Belenzinho 1910“. Escrito por Jacob Penteado, memorialista paulistano que nasceu e viveu no bairro e chegou até à Academia Paulista de Letras, o livro traça um retrato fiel do bairro paulistano do Belenzinho, Brás e arredores com toda a sua efervescência social, indústrias e comunidades de imigrantes. E um dos assuntos que Penteado destaca bastante são as cristalerias.
Fábricas destinadas a produção de artefatos de vidros e cristais, como frascos de perfume, garrafas, copos, cinzeiros, lustres e toda e qualquer coisa que você pode imaginar, as cristalerias são parte fundamental da história daquela região paulistana, chegando a rivalizar com as tecelagens como grandes empregadoras.
E as cristalerias eram tantas que chega a assustar saber que hoje em dia menos de meia dúzia delas tem alguma história para contar para os paulistanos, pois foram desaparecendo lentamente na segunda metade do século 20 até sumir quase que totalmente no início deste século. A maioria delas foram acometidas de falência, vendidas para outras empresas ou incorporadas, como a Cristaleria Barone cuja venda permitiu o surgimento da Nadir Figueiredo, hoje uma das maiores produtoras de artigos em vidro no país, mas que está nas mãos atualmente de um grupo estadunidense.
Contudo uma delas, que ainda existe, tem uma bonita história para contar. Trata-se da Cristaleria Nacional.
Localizada na rua Lopes Coutinho, a Cristaleria Nacional é uma rara sobrevivente, à sua maneira, de um ramo de negócio que foi praticamente dizimado pelas grandes indústrias e pela adoção de plástico e acrílico em diversos segmentos do nosso cotidiano.
A fábrica foi fundada em 1937 pelo imigrante catalão Lorenzo Fló Badell que veio para o Brasil ainda jovem após ouvir que no país buscavam-se artesãos de vidro para as novas indústrias que aqui surgiam. Antes de abrir a Nacional, Badell passou por terras gaúchas e até argentinas.
Quem passa diante da fábrica hoje em dia pode não imaginar o quão grande ela é, já que seu lote retangular se estende quase até a rua Coronel Albino Bairão, nos fundos da propriedade. Sua dimensão também esconde a velha chaminé, que resiste já quase duas décadas de inatividade. A fábrica na década de 1940 chegou a empregar pouco mais de 800 funcionários.
Desde sua inauguração a fábrica foi grande referência na indústria paulista e brasileira de vidros e cristais, contando com artesãos estrangeiros de alto nível técnico. O seleto e hábil time de especialistas da empresa era um grande diferencial da Cristaleria Nacional ante as concorrentes, já que isso proporcionava à fábrica o domínio de cores mais difíceis de reproduzir, como o vermelho. Entre seus funcionários a empresa tinha vidreiros da região italiana de Murano.
Na Cristaleria Nacional se produzida de tudo o que se pode imaginar quando o assunto é vidro ou cristal: lustres, luminárias, vasos, solitários, copos, taças, vidros para semáforos, faróis e lanternas automotivas e até tachões refletivos, utilizados para orientar pilotos em pousos e decolagens. O aeroporto de Congonhas utilizava desses tachos por eles produzidos.
Um dos períodos de maior atividade da empresa foi no pós segunda-guerra, quando a cristaleria aumentou a produção visando atender a demanda que as concorrentes europeias não estavam conseguindo suprir. Anos mais tarde se destacaria produzindo artefatos para futura capital do Brasil, Brasília, como nos vitrais do icônico Santuário de Dom Bosco.
Mesmo com a morte de seu fundador, em 1971, a empresa se manteve sob administração familiar passando então a ser administrada por Lourenço Fló Júnior, seu filho, que permaneceu no comando da Cristaleria Nacional até o encerramento das atividades.
CURIOSIDADE: Lourenço Fló Júnior foi presidente do Corinthians entre os anos de 1947 e 1949. Na década de 1950 também foi presidente do Tribunal de Justiça Desportiva (TJD). Na sala de troféus do clube existe uma taça com seu nome, fruto de um torneio amistoso disputado entre Corinthians e São Paulo em 1962. Na ocasião o timão venceu por 2 a 1 o jogo de ida e por 4 a 2 o jogo de volta, conquistando o Troféu Lourenço Fló Júnior.
Nos anos 1980 a modernização da indústria e a popularização de materiais de custo de produção mais baixo, como o plástico e o acrílico começaram a enfraquecer toda o setor vidreiro. Ainda na década anterior diversas outras cristalerias paulistanas, como a Cristaleria Jaraguá, não aguentaram e fecharam as portas. Entretanto a Nacional seguiu, mesmo com dificuldades até o início do século 21 apenas fechando as portas no ano de 2006.
Apesar de ter encerrado a movimentação fabril a Cristaleria Nacional ainda manteve um enorme estoque de produtos já finalizados, cujo volume atualmente é estimado pelos atuais proprietários em 50.000 peças. Nas duas imagens abaixo você confere parte deste acervo (clique para ampliar).
O São Paulo Antiga esteve na cristaleria à convite de Flávia Fló, bisneta do fundador, para conhecer o espaço. Já na entrada é uma curiosa e deliciosa viagem no tempo pois ao observar a imensidão da fábrica é possível imaginar todo aquele espaço em pleno funcionamento.
Na área administrativa a “mesa do patrão”, também produzida no bairro pela extinta Móveis de Aço Fiel, é mantida preservada tal qual o último dia que Loureço Fló Júnior trabalhou, inclusive com papéis e canetas por ele utilizadas. Ao lado um velho telefone de baquelite e uma máquina de escrever são como peças de museu.
O espaço fabril é simplesmente maravilhoso. É claro que quase duas décadas de inatividade geraram desgaste, poeira e um ar melancólico. Porém é inegável que todas as áreas, do estoque ao velho forno são como um museu industrial. Até mesmo o motor estacionário que movimentava os maquinários da cristaleria, produzido pela italiana Alfa Romeu na década de 1930, permanece lá preservado. Veja-os na imagens a seguir (clique para ampliar):
Mas nada é mais encantador e incrível como o velho showroom que segue intacto como se estivesse em pleno funcionamento. Lá é possível perder horas a fio admirando o vasto número de produtos em vidro ou cristal que eram fabricados por ele. Da variedade de peças ao brilho intenso e colorido a sensação é de ter entrado em uma local mágico.
A Cristaleria Nacional não é apenas um fábrica antiga. É um patrimônio cultural paulistano e parte fundamental da história industrial de nossa cidade, um fragmento do século passado que segue brilhando mesmo com o fim de suas atividades.
A empresa desde 2018 mantém em seu site oficial uma loja com diversos produtos da Cristaleria Nacional. Você pode adquirir os produtos à venda e ter em sua casa ou estabelecimento uma parte da história industrial de São Paulo. Acesse clicando neste link: https://www.cristalerianacional.com.br/pecas
Confira mais imagens da Cristaleria Nacional na galeria abaixo, clique na foto desejada para ampliar:
DOCUMENTÁRIO
Outro passo importante que os herdeiros estão dando é a produção de um documentário que ira contar em detalhes a história da empresa. Para isso ele abriram um financiamento coletivo, onde qualquer um pode contribuir, com diversos brindes disponíveis de acordo com o valor do apoio oferecido.
Para participar do financiamento coletivo é só clicar aqui.
Respostas de 5
Oq houve com a placa qu ficava ao lado do portão? passo lá todo dia e ela não está mais lá.
Infelizmente foi furtada!
Adorei saber da história dessa fábrica. Melhor ainda, saber que estão à venda, alguns produtos maravilhosos!
Parabéns pela publicação dessa história!
Muito obrigada.
Fascinante história!