Em uma sociedade altamente machista e patriarcal como a nossa não é de se estranhar que muitas mulheres fortes de nosso passado sejam apagadas de nossa história. Já outras são lembradas apenas por motivos que objetivam sua ridicularização ou discriminação. É o caso de Nenê Romano, possivelmente uma das mulheres mais belas e desejadas da São Paulo dos anos 1920.
Seu nome real era na verdade Romilda Machiaverni. Para “não envergonhar” seus familiares em sua atividade de luxúria atendia pelos apelidos de Olga e Nenê Romano. Ainda bem jovem iniciou sua vida de trabalho como costureira e posteriormente como camareira em hotéis no centro, onde despertou a chama do desejo em homens que passaram a cortejá-la por sua beleza e sensualidade. Ela abandonaria seus ofícios para ser uma prostituta de luxo, ou cortesã, como alguns gostam de dizer.
Sua beleza estonteante e seu trabalho como acompanhante trouxe certa estabilidade financeira, admiração e fama, mas por outro lado despertou inveja e ódio. Um desses rompantes de ódio quase desfigurou seu rosto, após um ataque de navalha a mando da filha de uma “baronesa do café” incomodada com o galanteio de seu pretendente em um corso de carnaval. O caso foi um escândalo que repercutiu a exaustão nos jornais da época.
Quis o destino que justamente o advogado que Nenê Romano contratou para defendê-la no processo contra a mandante de seu atentado, o jovem Moacyr Piza, se apaixonasse loucamente por ela a ponto de ficarem juntos por algum tempo. Posteriormente rejeitado não soube lidar com a situação e a matou, suicidando-se em seguida.
Tudo isso é conhecido e publicado a exaustão em jornais, revistas e livros desde 1923 até os dias atuais. Eu mesmo tenho praticamente pronto um livro sobre ela, com fotos inéditas e muitas informações que se perderam ao longo de 100 anos e que devo publicar em breve.
Quando ambos acabaram mortos alguns veículos de imprensa, em especial O Estado de S.Paulo, optaram por escrever sobre o caso com uma linha editorial que fazia do assassino, de família amiga dos donos do jornal, uma vítima. A vilã, claro, era a mulher que o “desviou de sua conduta” deixando-o à beira da insanidade para cometer o crime.
Crime esse que ainda tentaram atribuir a outra pessoa, no caso o pobre chofer que conduzia o casal pela cidade e que chegou a ser detido como suspeito de ter assassinado a dupla. As evidências, no entanto, provariam a inocência do motorista e a culpa do advogado.
QUAL A RAZÃO DE EU ESCREVER ESTE TEXTO?
Decidi escrever este artigo após me sentir indignado ao ler a matéria publicada na coluna “Andanças na Metrópole” do colega jornalista Vicente Vilardaga, onde ele ao discorrer sobre o túmulo de Moacyr Piza adentrou ao assunto do crime e da biografia de Nenê Romano, onde afirma erroneamente que:
1) Romilda (Nenê) veio ao Brasil com dois anos de idade
2) Que não se sabe ao certo onde ela foi sepultada.
Escrevi para o “erramos” da Folha alertando sobre o erro 2 mas talvez tomado por arrogância e desprezo ao meu trabalho como pesquisador, o autor do artigo insistiu que ele estava certo, com a resposta abaixo:
“Impossível identificar. Paula Janovitch esteve lá. Conversei com ela. Não erramos, existe controvérsia.”
Como estudioso de Nenê Romano por mais de uma década e autor de dois projetos de lei visando fazer justiça à memória dessa saudosa paulistana, escrevo este texto em resposta ao equívoco de Vilardaga e para esclarecer de uma vez por todas essa história que insistem em tentar reinventar a roda.
ONDE ESTÃO OS RESTOS MORTAIS DE NENÊ ROMANO?
Certa vez, em um artigo, o sociólogo José de Souza Martins afirmou que Nenê Romano foi enterrada no Cemitério da Quarta Parada, também conhecido como Cemitério do Brás. De fato nesta necrópole da zona leste de São Paulo existem sepultamentos antigos de pessoas com o sobrenome Machiaverni, o mesmo de nossa estudada aqui. Contudo Nenê jamais esteve por lá.
Tal afirmação de Martins, que aparentemente vaticinou o local de sepultamento sem uma pesquisa mais aprofundada, mostra o quanto uma informação imprecisa divulgada a exaustão pode ocultar a verdade, trazendo danos históricos e na memória de uma pessoa.
Bastava ao referido sociólogo uma breve visita aos cemitérios no qual se tinha dúvida pelo sepultamento e, com a data morte, perguntar na administração sobre os dados de sepultamento que, obviamente, são públicos. Mas se não quisesse ir até os cemitérios poderia fazer pesquisa em jornais e documentos da época do assassinato de Nenê Romano, através de visita a cartórios ou ao Arquivo Público do Estado. Pelo visto nada disso foi feito.
Tal imperícia também acometeu Vicente Vilardaga, em sua coluna na Folha de S.Paulo em 14/3/2024, que uma vez indagado por uma correção em seu texto, insistiu que não errou e que existe controvérsia. Faltou humildade ao nobre jornalista. A suposta controvérsia inexiste e desaba como um castelo de cartas ao ler a folha de sepultamento que publiquei acima ou então a certidão de óbito abaixo:
Mas se o colega não teve acesso ao documento acima, que é publico, ele poderia ter ao menos dispensado alguns minutos de pesquisa no acervo da hemeroteca da Biblioteca Nacional, onde não faltam reportagens que deixam claro onde Romilda Machiaverni foi sepultada. Deixo uma delas abaixo para vocês lerem e para facilitar um pouco o trabalho de Vilardaga:
Infelizmente com o passar dos anos e o fim de parentes vivos da família Machiaverni, o jazigo de Nenê Romano ficou completamente abandonado e depois de tentativas frustradas feitas pelo Serviço Funerário de São Paulo em atualizar dados da propriedade do espaço mortuário, o túmulo foi desapropriado e desocupado em abril de 1995 tendo os restos mortais de todos ali sepultados transferidos para o ossário central do Araçá, uma enorme construção que fica localizada na parte baixa deste cemitério. Já o velho jazigo foi vendido, reformado e outra família o ocupa desde então.
ELA NÃO ERA ITALIANA
Outro equívoco encontrado na matéria veiculada na coluna de Vilardaga é que Romilda Machiaverni (Nenê Romano) teria nascido na Itália e vindo para o Brasil junto de seus pais, com dois anos de idade.
Tal informação não procede pois Raymundo Machiaverni e Philomena Eboli (depois Philomena Machiaverni) se conheceram em São Paulo e se casaram em dezembro de 1895 na região central de São Paulo e sua filha – a futura Nenê Romano – nasceu em 1897. Ambos dados são públicos e estão disponíveis em cartórios de registro civil.
DEVOLVENDO DIGNIDADE A NENÊ ROMANO
Cerca de um ano e meio atrás estive em reunião com o gabinete do vereador paulistano Toninho Vespoli (PSOL) onde apresentei dois projetos de lei (PL) relacionados a saudosa figura de Nenê Romano, visando colocar em prática no ano de 2023, por ocasião do centenário de seu centenário de morte.
O primeiro projeto de lei visa a mudança do nome da rua Moacir Piza, no Jardim Paulista, para Rua Nenê Romano. Existem leis em São Paulo que permitem a alteração de nomes de ruas homenageiam torturadores, assassinos e também autores de feminicídios. Assim será possível reparar um erro que perdura desde 1935, quando a rua foi batizada com este nome.
Já o segundo projeto de lei objetiva a retirada dos restos mortais de Nenê Romano do ossário geral do Cemitério do Araçá, colocando-os respeitosamente em um ossário individual com devida identificação e homenagens à falecida.
Ambos os projetos estão em tramitação na Câmara Municipal.
Atualização: 19/03/2024 – O jornalista Vicente Viladarga reconheceu o equívoco e atualizou seu artigo com os dados corretos e uma errata.
Respostas de 11
Excelente artigo! Parabéns! Li o artigo da Folha de S. Paulo e lamentei a falta de informações sobre o sepultamento de Nenê Romano. Felizmente seu artigo mostra que os dados existem, basta buscá-los adequadamente.
Gostaria de sugerir um artigo sobre um fato parecido: em 1916, num hotel do Brás, o poeta Ricardo Gonçalves baleou a companheira e depois a si mesmo. Devido a uma suspeita de traição, eles tinham feito um pacto de morte. Ela sobreviveu ao tiro, ele não.
O fato teve ampla repercussão na época. Creio que daria um ótimo artigo para trazer aos leitores do presente mais essa história.
Obrigado!
Excelente matéria, Douglas!
Tomara que o Poder Público dê a este imbróglio um desfecho efetivo, restabelecendo a dignidade de Nenê Romano, que por décadas permanece nos porões da História.
Ótima matéria!
Matéria muito interessante. Não sei se há informação de possíveis parentes vivos da Nenê, mas em Campinas-SP há um médico famoso com o mesmo sobrenome dela. Ele ainda atende na cidade.
Douglas Nascimento,
Por acaso, recebi seu artigo sobre Nenê Romano, através do Google e do mecanismo automático de identificação de temas que me interessam.
Cumprimento-o pelo texto e pelo cuidado em reconstituir com critério a informação sobre o local de sepultamento de Nenê Romano. Você mesmo ou outra pessoa já me havia enviado essa mesma informação. Mas creio que, naquela altura, minha coluna sobre a cidade de São Paulo, no jornal “O Estado de S. Paulo”, já não existia. Eu não tinha, portanto, como fazer a correção com base nessa informação.
Como interessado muito antigo na história de São Paulo, desde meados dos anos 1950, acolho com gratidão sua contribuição ao esclarecimento dos fatos. Como você, eu também não sou dono da verdade. Nessa perspectiva corrijo minhas insuficiências e tenho contribuído muito para corrigir informações erradas sobre a história local, que são muitas, não raro de autores consagrados e insuspeitos. Autores não erram porque não são sérios, mas porque são humanos.
O caso de Nenê Romano e Moacyr Piza está muitíssimo longe do elenco dos temas prioritários de minhas pesquisas. Está entre os temas indiciais de uma história que pede pesquisas adicionais em relação a tudo que já se escreveu quanto ao assunto. Eu me defronto com outros mais urgentes e mais significativos na reconstituição da história social da cidade. Imagino que isso lhe aconteça também. Todos que se interessam pelo tema certamente lhe são agradecidos, como eu, pelo cuidado em relação a um tema menor que não teria autor se não fosse você.
Cordialmente, José de Souza Martins
Caro Douglas Nascimento,
Em minha mensagem, referi-me a pesquisador que me alertara, em meados de 2023, para o fato de que Nenê Romano fora sepultada no Cemitério do Araçá e indicava-me o local exato do sepultamento. Trata-se do sr. Leonardo de Oliveira Cipriani, estudioso de assuntos genealógicos. Ele se interessara pelo caso de Nenê Romano, em 2012, quando do falecimento do historiador Boris Fausto e a notícia de que ele escrevera um artigo sobre Nenê Romano e citava o Cemitério da Quarta Parada como o do sepultamento da moça.
Sou sociólogo e não repórter de ocorrências do passado. Nesse sentido, minhas pesquisas tratam dos fatos e acontecimentos sociologicamente explicativos. A biografia de Nenê Romano, que minha pesquisa cobriu extensamente para eventual análise posterior, é desse gênero: revela um aspecto decisivo da história social de São Paulo. Mas o detalhe do suposto local do sepultamento, isoladamente, não tem esse relevo metodológico.
Tem esse relevo, o velório e o local em que ocorreu, a casa em que morava com outras colegas de profissão, com o detalhe de que as únicas flores depositadas sobre a mesa funerária eram as mesmas que seu advogado e ex-amante, o poeta Moacyr de Toledo Piza, lhe levara na véspera, com um presente de aniversário. Junto com o poema prenunciador que ele escrevera, trata-se de um conjunto antropologicamente significativo que dá sentido aos impasses que levaram à tragédia: o assassinato e Nenê Romano e o suicídio Moacyr Piza, seu assassino, num táxi, na avenida Angélica.. Ao que eu agregaria o monumento funerário erguido sobre o túmulo do poeta, uma mulher nua esculpida em pedra na posição de um ponto de interrogação. Alguém me explicou: teria valido a pena perder a vida por uma mundana sem biografia?
Já a descoberta de Leonardo de Oliveira Cipriani , confirmada pela sua, muda tudo. É que o túmulo em que ela foi sepultada no Araçá aparentemente fora adquirido por gente de família grada e não pela pobre família de trabalhadores de origem italiana, do bairro do Brás. A que ela pertencia quando começara a trabalhar num hotel da rua Boa Vista, onde foi prostituída por fazendeiros que o frequentavam. Nenê Romano foi prostituta de luxo de homens ricos e poderosos de São Paulo. Era tida como a mulher mais bonita da cidade. Mesmo mutilada pela navalhada que a deformara, registraram os médicos da autópsia, conservava a beleza.
Pela época de sua morte, aparentemente era amante de Washington Luís, governador do Estado. Célio Debes, que foi meu confrade e amigo na APL, o autor da robusta biografia do político e historiador, não se demora sobre esse fato.
O importância da biografia de Nenê Romano não está na reportagem sobre um fato e detalhe do passado. Não é o túmulo que explica o caso. Mas os detalhes sociologicamente relevantes da formação biográfica da vítima. Na mentalidade estamental da época, ela era uma uma ninguém, um ser humano irrelevante. Na pesquisa que fiz para o livro que estou terminando, sobre a Revolução de 1924. a abundância de testemunhos e de interrogatórios de presos políticos, contida nas 18 mil folhas de documentos e quase 200 volumes, o juízo sobre os pobres, os trabalhadores, os imigrantes da cidade é o de que eram seres sem história, desencaixados, Não integrados na sociedade brasileira. Especialmente os do Brás e da Mooca. Nenê Romano era de uma dessas famílias.
Sofrera um atentado patrocinado pela família Junqueira, de grandes fazendeiros da Alta Mogiana, motivado por ciúmes de Sinhazinha Junqueira quando, num corso de Carnaval, vira Nenê, que desfilava num carro, atirar um bilhete para seu marido. Iria Junqueira, mãe da moça, mandara dois jagunços de sua fazenda tocaiar a moça em São Paulo e dar-lhe no rosto uma navalhada para desfigurá-la. Moacyr Piza foi seu advogado. Apaixonou-se por ela. Iria já havia ordenado, também, o assassinato de um genro, mais interessado na herança do que na esposa. Acabou presa. Recebia na cadeia a visita da elite política, o próprio governador. Crime entre gentes socialmente desiguais “não era” crime.
O caso de Nenê Romano documenta o que era a realidade social de então, porque é um caso metodologicamente revelador da crise da sociedade patriarcal e do advento dos ínfimos nas brechas abertas por essa crise de anomia e de mudança,
Portanto, meu artigo é parte de um estudo muito mais amplo do que uma notícia sobre um passado que não se explica pela indicação do lugar de uma sepultura. Sepulturas contém mais do que restos mortais…
Cordialmente,
José de Souza Martins
Gostaria de informações se conseguiram retirar os restos mortais do ossario Comunitário? Queria gravar uma homenagem para ela. 11 974611497
Pobre Douglas. Nada como o tempo para derrubar as máscaras. Pessoas que têm afinidade com narrativas da esquerda possuem grave desvio de caráter. Tomara que você se arrependa e peça perdão a Deus, antes que seja tarde demais. Acompanho seu trabalho faz tempo, e é cada vez mais notória a queda de qualidade dele. Não estou tripudiando sobre suas quedas, pelo contrário. É decepção mesmo. Mais uma vez, tomara que você se arrependa e peça perdão a Deus, antes que seja tarde demais. Quem avisa, amigo é.
Ora ora, a pessoa disse que segue faz tempo mas até hoje o único comentário que existe aqui, em 15 anos, é este carregado de preconceito com a esquerda.
Desvio de caráter tem você, que deve ter puxado isso de seus genitores. Aproveite bastante esse seu comentário pois é o último seu a ser publicado aqui, já que daqui por diante estarão bloqueados.
Esse rapaz deve ter problemas de interpretação de texto, não. Douglas parabéns pelo trabalho como sempre bem preciso.
Parabéns Douglas, esse seu artigo, tirou a máscara das inverdades dessa trágica história. Tomara que a justiça seja feita e o nome da Rua Moacyr Piza, seja mudado para Rua Nenê Romano. O cara mata a moça e ainda sai como “herói” dessa história ?. Abraços de Rondônia.